segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Instituto em Natal abre mais um centro e lança 'câmpus do cérebro'

Unidade de primatologia é a nova etapa do projeto dos cientistas brasileiros Miguel Nicolelis e Sidarta Ribeiro
Daniel Piza
Os motoristas de táxi de Natal (RN) ainda não sabem onde fica, mas o Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS) está no mapa-múndi científico. Já tem um centro de pesquisas, uma escola na capital e outra em Macaíba (a 20 km de Natal), onde em breve haverá outro centro de pesquisas. No terreno em frente, erguerá até 2010 o “câmpus do cérebro”, com mais 25 laboratórios e uma escola regulamentar para mil alunos. “A gente já provou que é capaz de atrair recursos e produzir ciência aqui”, comemora Sidarta Ribeiro, diretor de pesquisas.
O instituto é um sonho realizado do neurocientista Miguel Nicolelis e de seu ex-aluno Sidarta gestado há cerca de cinco anos. Ativo desde o ano passado, já reúne mais de 30 pesquisadores vindos de vários Estados e de outros países, como Chile e Portugal.
Os laboratórios estão conectados em rede com outros dois que Nicolelis dirige, na Universidade Duke (Carolina do Norte, EUA) e em Lausanne (Suíça), e com o do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. As instalações têm padrão internacional e, em alguns casos, até mais espaço do que um equivalente americano ou europeu.
Em paralelo, o instituto também abriu a Escola Alfredo J. Monteverde num bairro de Natal de nome significativo, Cidade Esperança, onde são dados cursos de ciência e tecnologia para crianças e adolescentes de escolas públicas. Nicolelis fez questão de que o centro de pesquisa viesse associado a um projeto educacional. “Nada melhor do que o método científico para tornar a educação mais agradável”, diz o presidente do instituto.
Para chegar até aqui, porém, os tormentos foram muitos. Sidarta, que mora em Natal há dois anos e meio, conta que chegou a ficar com falhas na barba tal o estresse que passaram para abrir o instituto no bairro da Candelária, próximo ao centro da cidade. “Na verdade, isto aqui é o plano C”, diz. “O plano A era construir o câmpus do cérebro no terreno que a universidade (Federal do Rio Grande do Norte, UFRN) nos doou em 2003. Mas, como tudo era demorado, decidimos alugar este prédio em Natal para começar o trabalho. Depois veio o plano B, que é o centro de pesquisa que vamos inaugurar em Macaíba, dentro do terreno da Escola Agrícola da UFRN.”
Inovação
Burocracia dificultou início do trabalho no RN
Importação de equipamentos esbarrou em entraves burocráticos, greves alfandegárias e impostos altos
Daniel Piza
As demoras para concretizar o sonho do Instituto Internacional de Neurociências de Natal Edmond e Lily Safra (IINN-ELS) deveram-se a vários fatores. Faltavam, por exemplo, incentivos para investimentos privados. O Rio Grande do Norte era um dos poucos Estados que não tinham uma fundação de amparo à pesquisa, o que passou a ter mais tarde.
A importação de equipamentos da Universidade Duke - cujos laboratórios são dirigidos por Miguel Nicolelis, cientista que idealizou o instituto - esbarrou em uma série de entraves burocráticos, greves alfandegárias e impostos altos. A estrada até o futuro câmpus só começou a ser construída agora, depois de licitação.
“Vivemos situações absurdas”, resume Sidarta Ribeiro, diretor de pesquisas do instituto. “No Brasil é besteira fazer uma compra em outubro. Você paga, mas a liberação oficial leva três meses e, como antes de março nenhuma compra pode ser feita, o equipamento só chega seis meses depois do pagamento. O jeito é esperar o carnaval passar.” Ele conta seu desespero quando 14 cérebros de rato vindos do Chile foram entregues no aeroporto, mas não havia refrigerador para evitar que descongelassem.
Sidarta mostra com ânimo o prédio em Macaíba onde o centro de primatologia do instituto começará a funcionar, provavelmente em junho. Há sala de cirurgia, laboratório de biologia molecular, arena para os sagüis (onde também será estudada a comunicação entre eles), auditório para 120 pessoas (haverá um curso de altos estudos com 24 professores estrangeiros em julho), uma câmara fria e salas de computador. Tudo pronto, em modernas instalações. Mas a inauguração depende da liberação da alfândega e da autorização do Ibama para o envio de animais. Há previsão? Sidarta dá um sorriso irônico. “As previsões nunca se concretizam.”
Agora ele e Nicolelis acham que “o pior já passou”. Sidarta, de 37 anos, não esconde sua satisfação em estar, “pela primeira vez na vida”, à frente de um laboratório bem equipado e “cheio de funcionários”. De papete e já usando “pronto” em quase todas as falas, está ambientado. Até já dá aulas - de capoeira. Na unidade de Natal, mostra cada um dos laboratórios, além dos biotérios. Destaca a sala da coordenadoria científica, onde se faz o “lab management” (a gestão dos laboratoristas), “algo que não existia no Brasil”. Mostra os eletrodos de tungstênio manufaturados no próprio instituto, que estuda sua biocompatibilidade ao implante em seres vivos.
O instituto também pesquisa a interface cérebro-máquina, principal linha de Nicolelis, e vai estudar o mal de Parkinson. Nos corredores estão pendurados cartazes plásticos com resumo dos principais artigos científicos escritos por Nicolelis com Sidarta e outros membros da rede.
Ter ao menos essa dupla de cientistas renomados ajuda o instituto a crescer - e a atrair pesquisadores como a bióloga Catia Mendes Pereira. Formada na Escola Paulista e bolsista do CNPq, ela abraçou com entusiasmo o projeto de Natal, para onde veio com marido e filhos no ano passado. “Era uma experiência pessoal e profissional bem atraente, sobretudo por trabalhar com nomes tão importantes.”
Aulas de ciência para não ser conformista
Nas escolas do instituto em Natal, jovens estudantes descobrem o prazer de aprender as várias disciplinas
Daniel Piza
Os cursos científicos para estudantes das escolas públicas de Natal não são um detalhe no trabalho do Instituto Internacional de Neurociências, um apêndice social para a boa imagem do centro de pesquisa. São, na verdade, a outra perna que o sustenta. “Aqui o aluno aprende a duvidar, a questionar, a defender seu ponto de vista”, diz a diretora de projetos e ações sociais do instituto, Dora Montenegro. “A ciência é usada para ele estruturar o pensamento a não ser conformista. O conteúdo é meio, não fim.”
Nas duas unidades da Escola Alfredo J. Monteverde, uma em Natal e a outra em Macaíba, é isso que se vê. Os alunos, que são escolhidos por sorteio entre os inscritos das escolas da região, aprendem com mais prazer e participam mais das aulas.
Eles fazem do 6º ao 9º ano regulamentar num período; duas vezes por semana no outro período, durante três horas e meia cada dia, vêm cursar ao menos duas disciplinas por semestre.
Sem pichação
Em Natal, onde estudam 600 alunos, há laboratórios de biologia, química, física e eletrônica e oficinas de “ciência & arte”, história e robótica. Os estudantes mais velhos também ajudam a fabricar instrumentos e objetos. A escola tem microscópios, computadores e até telescópio, entre muitos outros equipamentos. “Aqui não há pichação, não há brigas. A gente vê no rosto deles que gostam de estar aqui”, diz Dora Montenegro.
A estudante Amália Caroline, de 13 anos, que cursa o 8º ano em sua escola, diz o mesmo: “Aqui eu aprendo mais. Gosto muito de física, por exemplo, que antes eu achava que era chato.”
Na unidade de Macaíba, com 400 alunos, há oficinas sobre identidade regional, eletrônica e “ciência & movimento”. Nas paredes dos corredores, vemos desenhos que ilustram como teria sido o Big Bang, a origem do universo. A idéia é que muitos desses adolescentes possam um dia ocupar as paredes dos centros de pesquisa com muitos trabalhos originais.



Entrevista

Para cientista, entrada de equipamentos no País é complicada e as leis não atendem o transporte de animais de pesquisa
Daniel Piza
Se o cérebro funciona como “uma democracia de neurônios”, em sua própria frase, Miguel Nicolelis, de 47 anos, é um de seus maiores cientistas políticos. Colegas dizem que há um cérebro “antes de Nicolelis” e outro “depois de Nicolelis”. Fez demonstrações empíricas sobre a dinâmica dos neurônios, desenvolveu um modelo para entendê-la e passou a criar máquinas de interface que permitem que o cérebro as opere à distância. Graças a ele, é possível seqüenciar muito mais neurônios por mais tempo. Tal descoberta o pôs na lista de candidatos ao Prêmio Nobel.
Médico e cientista paulistano, o presidente do Instituto de Neurociências de Natal passa a vida em laboratórios e hotéis. Na semana retrasada, estava na Coréia do Sul. No domingo, estava no Palestra Itália vendo seu time ser campeão paulista e, na última quarta, falava da Carolina do Norte por celular com o Estado. Ele defende mudanças na política científica do Brasil.
Com base na experiência dos últimos cinco anos, em que houve problemas burocráticos e alfandegários, o que o sr. sugere para que o apoio a iniciativas como essa (do instituto) seja melhor no Brasil?
Há muitas mudanças a fazer na estrutura, principalmente federal, e no trâmite. A entrada de equipamentos, insumos e animais é muito complicada. Parece feita para não funcionar, tal o emaranhado de lei e a burocracia kafkiana. Nossas leis são de 30 anos atrás. São para animais domésticos, para levar cachorro na viagem. Não atendem o transporte de animais de pesquisa. Os prazos são longos. Isso explica por que coisas dessa magnitude em geral não vingam no País. Todos os dias temos razões para desistir, mas não desistimos. O resultado é impressionante, principalmente ver crianças decolando para entender a ciência.

De onde vieram os recursos?
Nossos recursos foram 70% privados até aqui. E eles têm um impacto que não é apenas científico, mas também social. Precisamos de mais leis que favoreçam o investimento privado em pesquisa. No mundo atual, as empresas que se destacam são aquelas que investem de 1% a 5% de seu faturamento em inovação, em pesquisa. Assim como existem leis de incentivo à cultura e ao esporte, deveríamos ter uma para a ciência. E menos burocracia. Os fundos setoriais são insuficientes.

Escolher Natal para sair do “eixo” Rio-São Paulo e estar num lugar atraente para pesquisadores estrangeiros foi acertado?
Foi a escolha correta, sem dúvida. Sempre quisemos descentralizar a ciência no Brasil, sair do Sudeste. Por isso, temos vontade de levar a experiência de Natal para outros Estados do Norte e do Nordeste. Queremos enraizar e emancipar esse projeto.

Por que fez questão de incluir projetos educacionais?
Sempre fui a favor de um modo diferente de fazer ciência, não dissociada da realidade, não abstrata, mais compreensível, mostrando seu impacto na vida das pessoas. E nada melhor do que o método científico para tornar a educação mais agradável, em vez de uma coleção de fatos não correlacionados. A criançada ali registra o ambiente onde vive e o País de uma maneira que não é enfadonha, que é divertida, até porque é feita em grupos.

Entre as linhas de pesquisa do instituto, há seu trabalho com interface homem-máquina. Que contribuições os laboratórios de Natal podem trazer, sem ser coadjuvante de Duke, Lausanne ou do Sírio?
Muitas. Ele vai colaborar de igual para igual com a rede. Em certas áreas ele estará à frente dos outros, num papel de liderança, não à margem. Descobertas já estão sendo feitas ali. Um centro de primatas como o que vamos inaugurar daqui a dois meses é raro mesmo nos EUA.

O sr. está escrevendo um livro?
Estou escrevendo três livros. Um sobre minha teoria; chegou a hora de fazer a síntese dos meus 20 anos de pesquisa. O outro é para divulgá-la para um público amplo. E o terceiro é relato do empreendimento de Natal.
Como o sr. vê descrições do seu trabalho como “manipulação de robôs pela força do pensamento”?
O problema é que o pensamento não tem força; não dá para medi-la (risos). Minha visão é muito diferente. O que consegui foi mostrar que era possível decodificar em outra ordem de grandeza os sinais cerebrais, as atividades elétricas, e daí veio o trabalho com as interfaces. Meus colegas desconfiavam, mas hoje estão reconhecendo que é possível. Já podemos pensar numa terapia com interfaces para pacientes neurológicos. Estamos perto.

Qual é sua visão da consciência, por exemplo, em comparação com a de um Gerald Edelman (biólogo vencedor do Nobel de 1972)?
Ambos acreditamos que nos últimos 20 anos a neurociência deu um salto com a tecnologia de imagens e os estudos evolucionistas. Mas ele tem uma visão reducionista. Mostrei que o cérebro funciona por populações neurais, não por regiões anatômicas. Ele estudou os neurônios isolados. Trabalhou com poucos dados, então não consegue se desvencilhar dos princípios fisiológicos. É uma visão darwinista, mas não de modo complexo. Para mim, o cérebro tem papel de liderança em relação ao corpo.
E a de Antonio Damásio (neurologista português)?
O Damásio é um excelente pesquisador, mas acho sua visão tradicional. Ele está preso ao dogma do século 20, a teoria da localização (funções cerebrais executadas em regiões específicas). O cérebro é muito mais participativo, plástico, com funções mais distribuídas. A distinção de áreas anatômicas não é tão nítida.

domingo, 23 de novembro de 2008

Roda Viva: Miguel Nicolelis

01/09


02/09

06/09

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05/09

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07/09

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09/09

sábado, 15 de novembro de 2008

Mind Control Monkey Moves Robot in Japan

Resumo da Pesquisa de Miguel Nicolelis

A CIÊNCIA PODE SER UM AGENTE DE TRANSFORMAÇÃO


ENTREVISTA: MIGUEL NICOLELIS
CAROS AMIGOS - MAIO/2008




Thiago Domenici Vou fazer uma provocação: o
senhor acredita em Deus?
Não. O único divino que eu acredito é o Ademir da Guia [craque do Palmeiras nos anos 1960-70, apelidado de Divino pela crônica esportiva]. Aliás, tenho uma ótima relação com Deus: ele não acredita em mim e eu não acredito nele.

Thiago Domenici Posto isso, vamos à infância.
Foi excelente. Nasci na Bela Vista, na parte do Bixiga, mas a família mudou pra Moema e cresci lá. Nossa grande diversão era ver avião pousar em Congonhas.

Marcos Zibordi Você é filho único?
Tenho uma irmã. Tem um monte de carcamano na família de descendência italiana e grega. Meu pai Angelo Brasil Nicolelis é juiz aposentado, e minha mãe é escritora, Giselda Laporta Nicolelis, na literatura infantil é conhecida, razão pela qual fui embora do Brasil, senão seria o filho da Giselda o resto da vida.

Marcos Zibordi Estudou em colégio público?
Estudei no primeiro colégio de Moema. Depois, no Bandeirantes. 

João de Barros O que te chamou atenção na biologia?
No Bandeirantes comecei a tomar contato com essa visão humanista da biologia, entender
a razão pela qual a gente é o que é, de onde a gente veio, tomar contato com a teoria da evolução, perceber que existe uma beleza – é pena que a palavra milagre já foi ocupada por outra “empresa”, mas é fascinante poder descobrir a riqueza e complexidade das coisas e o fato de ser inteligível e explicável. E o Bandeirantes tinha laboratórios raros. Você podia fazer alguma coisa que não estava no script. Aí percebi que ciência é o melhor emprego que existe, pagam você para ser moleque, experimentar, se divertir.

Mylton Severiano Na infância a questão de Deus não existia?
A família era muito religiosa, mas minha avó, grande inspiradora intelectual, dona Ligia Maria, era uma agnóstica em dúvida. 

João de Barros Você fez primeira comunhão?
Foi um trauma, foi no dia que o Palmeiras ia disputar o título com o São Paulo, em 1971, e foi roubado no gol do Leivinha, de cabeça: o Armando Marques anulou o gol. Era pra eu ir ao jogo, e minha mãe entre Deus e o Palmeiras: aí a ruptura foi clara com Deus. Se existe o ser que criou tudo, não vai ser benevolente pra deixar um moleque de 10 anos assistir o jogo do Palmeiras?

Mylton Severiano Quando você foi pro curso superior?
Entrei na faculdade para ser neurocirurgião e descobri que era mais ou menos trabalhar com encanamento o resto da vida – coisa fundamental, quando você quiser um neurocirurgião, o cara tem que ser bom, mas não era pra mim. Percebi que era possível fazer o que fazia no Bandeirantes profissionalmente.

Vinícius Souto Algum professor teve papel importante?
Vários, mas o que me inspirou é o fundador da neurociência brasileira, Cesar Timo-Iaria, um cientista humanista. 

João de Barros Como se dá esse confronto, do cientista humanista com o “de resultado”?
A ciência hoje é um grande negócio, atividade extremamente competitiva. Mas ainda mantém esse fascínio de dar a chance de perseguir o desconhecido, no meu caso tentar entender o que o cérebro faz, que é a grande fronteira da biologia hoje.

Marcos Zibordi Era esse confronto que você tinha na faculdade?
A universidade brasileira ainda vive da hierarquia, da hipótese de que quem está à frente da classe sabe mais. E ainda não permite um canal de desafio. O que aprendi muito nos EUA é que se você está dando uma aula, e o menino do colegial que está na universidade fala que você está falando besteira, “não é assim, é x, y, z”, você tem que parar e falar “tem razão”. Esse canal de comunicação bilateral não existia aqui. Ainda vivemos do saber da autoridade.

Mylton Severiano É cultural?
Cultural, o “professor-doutor”. Pelo título assume-se que você é autoridade naquela área, mas nem sempre era verdade. Muitos chegaram a posições de altíssimo destaque.

Mylton Severiano Aquele que acabou com Manguinhos: Rocha Lagoa?
Não conheço. Manguinhos é a resistência da ciência nacional. Maravilhosa. A gente não conhece o patrimônio científico do Brasil.

Thiago Domenici Como o quê?
Pouca gente conhece o Carlos Chagas e o trabalho dele é um dos poucos exemplos da história da infectologia onde o cara descobriu a doença, o agente e o vetor. É raro encontrar um pesquisador que conseguiu ir atrás de todos os passos de uma doença que na América do Sul e na África é importante.

Camila Martins Não se reconhece o brasileiro por quê?
Não temos a cultura da ação científica como patrimônio do país. Todo o mundo conhece Machado de Assis, artistas, jogadores, econo mistas. Não faz parte do nosso ethos enquanto cultura brasileira delinear o que a inteligência criou na ciência. O Santos Dumont é o maior cientista que o Brasil já criou, o maior neurocientista o maior inventor. E nunca foi para a escola, então foi quase que repudiado nos livros da história da ciência brasileira porque nunca teve diploma.

Mylton Severiano Você falou Santos Dumont neurocientista?
Sim, um experimento que fiz recentemente demonstrou que ele estava certo. Fiz sem querer, ele fez de propósito. Ele tinha um problema claro. Tinha vários controles que precisava comandar, a inclinação da asa, ele inventou estabilizadores vertical, horizontal, o flape. Só que não existia botão e luzinha, pra dizer “isso aqui não está funcionando, puxe esta alavanca”. Só existia polia, corda e alavanca. Mas o número de alavancas era grande para ele dar conta. Então, em certos aviões dele, ele amarrava as cordas no terno, de maneira que, se mexesse pedaços do corpo, corrigia erros de elevação. Percebeu que incorporava o avião. Percebeu algo que nós demonstramos três anos atrás.

Mylton Severiano Isso tem a ver com o McLuhan, que fala da extensão do corpo?
Exato. Nós demonstramos que o cérebro assimila as ferramentas que usamos diariamente.  Sempre uso o exemplo do jogador de tênis. Para o cérebro a raquete, depois de
anos de prática, deixa de ser uma ferramenta para ser uma extensão do braço. Então para os mapas que temos dentro do cérebro, que definem quem nós somos, aquele braço agora tem dois metros de comprimento e termina num oval. O Santos Dumont percebe isso  empiricamente. O pessoal olhava e via um cara se contorcendo, achava que ele tava tendo uma crise epilética, mas na realidade ele estava usando o corpo – o avião era um pedaço dele. Escrevi uma vez uma pequena história dele, “o homem que virou avião”.

Roberto Manera O cérebro dele substituiria o radar de navegação?
O cérebro dele era um giroscópio. Ele tinha uma noção de espaço rara. Existem áreas do nosso cérebro que codificam onde estamos. Uma delas: o hipocampo, que, a cada momento que a gente está navegando, mapeia onde a gente está. Para onde está se dirigindo, quais as coordenadas. Esse é meu grande debate filosófico com meus colegas hoje. Todo o mundo pensa o cérebro como um órgão que interpreta o mundo. Acredito que o cérebro cria o modelo do mundo, e ele só confirma ou nega esse modelo continuamente. Essas são duas escolas que estão batendo de frente. Como bom palmeirense gosto de dizer que estamos começando a ganhar o jogo. Levou 100 anos para as pessoas acreditarem que o cérebro tem um ponto de vista interno, dele, próprio, criado ao longo da nossa vida. Cada um de nós cria esse modelo do mundo.

Marcos Zibordi Seria mais forte que predisposição genética? 
A genética nos dá um arcabouço, o começo de cada um de nós é mais ou menos o mesmo, o cérebro define quem cada um de nós é. Acredito que ele gera um modelo, tanto que, se você perde uma mão, o braço, durante muito tempo quase 90 por cento dos pacientes desenvolve um fenômeno chamado “membro fantasma”, pior do que as pessoas comentam, porque 80 por cento têm o membro doloroso – sentem dor numa parte que não existe mais. 

Thiago Domenici: Dentro dessa briga de escolas, o que mostra que vocês estão ganhando o jogo?
Os estudos com robôs. Começamos em 2003 e temos publicado trabalhos que confirmam os experimentos originais e agora outras pessoas reproduziram nosso achado. Demonstramos que, se você puser o cérebro em controle de um membro artificial, uma prótese mecânica, mesmo a 4 mil quilômetros de distância, mas se conseguir fazer aquele braço se mexer em 200 milissegundos, que é o tempo que leva para o cérebro mexer o braço biológico, e se o braço mecânico fizer o movimento, o que o cérebro quiser que ele faça, o cérebro assimila aquele braço como uma parte do corpo. Então mostramos as células do cérebro se dividindo fisiologicamente, funcionalmente, a sua fidelidade funcional se dividindo entre os dois braços
fisiológicos e o novo braço robótico como se o animal tivesse ganhado um terceiro braço.

Mylton Severiano Isso foi feito com animais.
Foi feito com macacos e agora temos evidências que acontece em seres humanos. 

Marcos Zibordi Vocês não chegaram a testar  em humanos?
Não, nós publicamos um trabalho em 2004 com parkinsonianos que estavam sendo operados e criamos um eletrodo; quando você está operando o cérebro de alguém, é treinado pelo ouvido, você ouve o cérebro, as células, que se comunicam com eletricidade; mas cada célula produz um som peculiar, cada região do cérebro tem um som. Pouca gente sabe. A gente aprende a saber onde “está” no cérebro, não só pelas coordenadas tridimensionais, mas pelo som. Se tiver um som de pipoca estalando, eu talvez te diga que lugar do cérebro é, porque passei 20 ano ouvindo.

Michaella Pivetti O cérebro tem visão de mundo?
Minha teoria é que, ao longo do desenvolvimento, você vai mapeando a estatística do mundo ao redor, sua interação com o mundo; essa estatística vai sendo incorporada no cérebro de tal maneira que cria um modelo de realidade. Por exemplo, você tem um paciente esquizofrênico e certas coisas acontecem no cérebro, esse modelo de realidade sai de foco. O paciente tem alucinações, pensa que o estão perseguindo, ouve sons. Se você examinar o cérebro dele, vai ver que o córtex auditivo, por exemplo, está sendo ativado sem ter nenhum som. Está vindo de dentro dele. Estou desenvolvendo essa teoria, explicando quais  princípios regem a criação de um modelo interno do cérebro sobre o mundo. É como olhar o mundo do ponto de vista do cérebro, esse é nosso embate. Por exemplo, você quer entender meu cérebro. O que faz? Manda um sinal, visual, tátil, auditivo, meu cérebro interpreta, você mede aqui de fora como é que reagiu, mas esse é o seu ponto de vista, de quem está  tentando entender aqui de fora como funciona. Se você pegar um animal ou ser humano  anestesiado e fizer o que falei, o cérebro te dá uma resposta – o que levou um monte de gente a pensar que o cérebro é só um decodificador de sinais. Foi a doutrina durante o século 20 do sistema nervoso: ele decompõe o sinal e analisa em detalhe a grandeza física que recebeu.   Quando a gente começou a olhar em cérebros despertos em animais, e agora em cérebros humanos, começou a ver que o cérebro já está computando um monte de coisa antes mesmo de você mandar aquele sinal. Ele já criou uma expectativa do que você vai fazer, ou do que vai acontecer daqui a cem milissegundos, duzentos. E na minha visão ele está só, basicamente, testando essa hipótese. Se é de acordo com o modelo, reage de maneira tranqüila. Se não tem nada a ver com o que ele estava esperando, gera um sinal de alerta. O doutor César trabalhou nisso, um sinal de alerta que fala “opa, tenho que atualizar o modelo porque a minha hipótese não foi...”

Mylton Severiano Mais explicadamente, vamos dizer, eu falo “Fulano, me passa...” e ele me dá os óculos, mas não eram os óculos...
É que 70 milhões de vezes antes você já pediu seus óculos. O cérebro é um agente ativo, não é um decodificador passivo, ele não é um computador. É um criador da realidade, da sua realidade. Você pode ver o Palmeiras trucidar o São Paulo e achar que foi uma injustiça, eu vou achar que foi...

Marcos Zibordi Deus?
Exato. É que nem a CPI da Tapioca, o cara compra uma tapioca e os caras acham que ele anexou a Bolívia. Criam uma celeuma. 

Marcos Zibordi O funcionamento é o tempo todo?
Mesmo quando você está dormindo, sonhando, uma fase importantíssima. Nós temos vários trabalhos, outros grupos, sugerindo que suas memórias estão sendo consolidadas durante o sonho, sendo reprogramadas. Mesmo no sono o cérebro está processando informação.

Michaella Pivetti Uma noite sem dormir perdese memória?
Nós estudamos hoje se adquirir informação antes de dormir é melhor do que adquirir e não dormir. As crianças vão na escola às seis, sete da manhã: quem disse que esse é o melhor  horário para se aprender? Uma série de estudos diz que para alguns é o pior horário. 

Mylton Severiano O Brizola falava que precisa cuidar do cérebro da criança até os seis anos, depois disso “queima o computador”. É mesmo?
É um período crítico. Por isso na nossa escola, acho que é uma das primeiras do mundo, o currículo começa intra-útero. Estamos trazendo as grávidas para a escola, em Natal, em Macaíba. Um número razoável é adolescente e a criança quando nasce já vai entrar no currículo, vai ser vista como um ser integral. Um aprendizado fundamental para se criar um ser crítico, consciente, que consiga exercer seu potencial mental na plenitude, começa intra-útero. 

Léo Arcoverde E porque você foi para os Estados Unidos?
Fui para os EUA em 1989. Terminei meu doutorado e queria fazer algo que aqui não existia, e não existia lá. Mas um cara, uma coincidência, tinha posto anúncio na revista Science procurando uma pessoa para fazer exatamente o que eu queria: registrar grandes populações de neurônios. Os astrônomos têm uma analogia disso. A astronomia nasceu com um telescópio, o cara olhava para uma estrela. Nos anos 1960, se percebeu que você podia estudar o universo não só com luz no espectro visível, mas galáxias, estrelas, medindo fontes de ondas de rádio do universo. Estava a ler sobre isso e perguntei para o Cesar por que a gente não podia fazer isso em neurociência.  Em vez de olhar um neurônio de cada vez, criar uma matriz, e ver centenas de eletrodos simultaneamente. O Cesar falou “aqui não tem jeito, mas deve ter algum doido pensando nisso nos Estados Unidos”. Lendo uma Science, onde põem anúncios para recrutar cientistas,  tinha um cara na Filadélfia pedindo exatamente o que eu tinha, a idéia. Só que era falso, ele tinha posto porque queria dar o greencard [visto de permanência] para um coreano que trabalhava no laboratório dele, criou o anúncio mais maluco, e o único cara que “apareceu” era o coreano. Mas eu mandei uma carta de vinte páginas, explicando meu plano, e acabei com a alegria do coreano. Cheguei no escritório do John Chapin, meu amigo até hoje, ele disse “puxa, nunca imaginei que alguém ia mandar um plano desse, na realidade esse anúncio era furado”. E eu fui pra Filadélfia.

Mylton Severiano Mas por que não era possível examinar grupos de neurônios? Tecnologicamente existiam problemas, e resistência conceitual da comunidade. 

Mylton Severiano Essa recusa não é ideológica?
Não, era do medo do diferente. A ciência também é conservadora. 

Mylton Severiano Então é ideológico, não?
De certa maneira, sim. A resposta do cara era “será que precisamos de tecnologia da era espacial para estudar o cérebro?”, e a nossa resposta foi “sim”, e o cara ficou uma fera, não ganhamos um tostão.

João de Barros Por que se batia tanto nessa de estudar um neurônio só?
Porque neurônio é considerado – outra coisa que está mudando –classicamente como a unidade funcional do cérebro. No fígado é o hepatócito, no rim é o nefron, no osso é o osteócito, a teoria celular...

Mylton Severiano Uma visão burocrática?
Era um dogma, acentuado porque o pai da neurociência, um espanhol, um gênio, Santiago Ramón y Cajal, Prêmio Nobel em 1906 [fisiologia e medicina], demonstrou que o cérebro é formado por células, separadas por um espaço muito restrito, não como o coração, onde as células estão interligadas eletrotonicamente. Isso foi um troço. Ele criou a Teoria Celular do Cérebro. Só que nos últimos dez, quinze anos, a gente tem visto que uma célula no cérebro é que nem um dado que você joga. Num dado dá para ter de um até seis, a célula é um ou zero: ou dispara ou não dispara. Mas ela é um elemento estatístico. Um neurônio não define nenhum comportamento por si só. O cérebro é uma democracia, precisa de um grande número de votos estatísticos – são meio ruidosos – pra criar um comportamento  determinístico. Isso durante muito tempo foi difícil de ser assimilado na comunidade neurocientífica. Tenho batido de frente há quase quinze anos sugerindo que a unidade funcional  do cérebro não é o neurônio, mas uma população de neurônios, que num momento vota por uma decisão, e depois eles se dissociam.

Mylton Severiano São 12 bilhões mesmo?
Na estimativa mais moderna são 100 bilhões, mas é mais. Tem tanto neurônio no cérebro  como estrelas no universo. É um universo. Que vem do cérebro mesmo, é a poeira da estrela que gerou ele. O universo é um ovo, começa com o big bang, aí todos os átomos se espalharam e calhou de no estádio do Parque Antártica se convergir numa coisa chamada  cérebro. Um ovo, fechou o ciclo. Demorou um pouquinho, não? 15 bilhões de anos. Ele provavelmente obedece a princípios próximos. Esse reconciliar nunca foi feito, as pazes entre de onde a gente veio e pra onde vai, enquanto espécie, nunca se fizeram. E agora estamos começando a olhar pro cérebro de maneira mais holística, mais completa, e não só com uma célula, outra célula... 

Marcos Zibordi Qual foi o avanço que nos permitiu dar esse salto?
O grande avanço foi a criação dessas matrizes de eletrodos num laboratório do John Chapin, filamentos do diâmetro de fio de cabelo, flexíveis, que você consegue inserir no cérebro, sem que danifique. Eles ficam lá, por meses, a ponta fica do lado de várias células, e cada ponta registra as correntes elétricas que vêm de cada uma dessas células.

Marcos Zibordi Dá pra pôr?
Eu já pus 760 na cabeça de um macaco. Aí é o lado neurocirúrgico, é fácil, você abre, mas as aberturas são pequenas craniotomias e só entram dois milímetros no cérebro. Isso devo muito à faculdade: a destreza manual de fazer isso é rara nas faculdades americanas, é um  treinamento motor muito bom aqui. O segundo foi: “bom, você tem um terabyte a cada meia hora, como você faz?” Como pôr isso em matrizes de computadores? Tem um supercomputador analisando o cérebro, os sinais que vêm, e aí como você analisa esses dados? Não havia ferramentas matemáticas para olhar uma matriz de dados elétricos do cérebro.

Thiago Domenici Vocês criaram um software?
É, adaptamos métodos estatísticos. Por quê? Tinha um prêmio Nobel, Simon Davi Sil-ber, que dizia que se ele precisava de estatística para ver um fenômeno neurofisiológico, o fenômeno não existia. Ele simplesmente não acreditava em estatística. É uma formação muito dogmática do ponto de vista biológico puro – ou é branco ou é preto. E o que a gente propôs foi: vamos olhar o cérebro como uma máquina estatística, e não como a gente olhou durante cem anos. E começou a dar resultado, a gente começou a prever em tempos reais o que o ratinho estava pensando, coisa simples. E a boa idéia foi essa. Dez anos atrás estávamos eu e o John na periferia da Filadélfia, comendo um sanduíche típico, Cheese Steak, num bar de caminhoneiro,  falando de cérebro de rato, os caras olhando para nós, e tivemos a idéia de ligar o cérebro a um robô. Provamos do ponto de vista quantitativo que, se a nossa teoria tinha algum mérito, aquele bicho ia conseguir pensar, nós íamos conseguir ler o pensamento e fazer um robô se mexer. Quer dizer, estávamos pegando um sinal do jeito que é produzido e criando um modelo que tentava imitar o que o cérebro faz, para fazer o movimento de um braço artificial ser o mesmo do braço biológico. Foi aí que nós criamos essa interface cérebro-máquina. 

Camila Martins Isso também é inteligência artificial?
A inteligência artificial é classicamente uma tentativa de reproduzir as decisões humanas num nível mais cognitivo, um nível mais alto. Nós estamos indo lá embaixo no sinal elétrico  mesmo, e tentando gerar coisas que gerem movimento, ou como nós acabamos de fazer, mas não publicamos ainda: mandar mensagens de volta para o cérebro e ver se o cérebro entende, conversar com ele. A minha macaca favorita é a Aurora; eu dizia que estamos começando a conversar com a Aurora, mas não verbalmente, nós estávamos mandando um sinal pro cérebro e esperando que ela respondesse se entendeu ou não o que a gente quis dizer. Recentemente dois macacos responderam que entenderam comportamentalmente.

Thiago Domenici Mas como?
O macaco está no escuro, tem duas portas; uma tem uma fruta, outra porta não tem nada. Nós mandamos a mensagem “a fruta está na porta direita”, ele foi lá e abriu; a outra, “a fruta
está na porta esquerda”, foi lá, a fruta não está, ele ficou quieto. Começamos a perceber que a mensagem estava sendo decifrada. 

Roberto Manera Mas em que linguagem?
Eletricidade. É um padrão de pulsos elétricos que variam no tempo e no espaço. Um padrão  chamado espaço temporal. Roberto Manera Estão conseguindo provar que meu cachorro, por exemplo, é mais inteligente que o Maluf, como acho que é? Esse experimento eu não realizei. O cachorro tem um grau de inteligência e de consciência. A gente não sabe qual é o horizonte dessa consciência, mas ele provavelmente tem mais senso de humanidade do que certas figuras. 

Roberto Manera À luz da neurociência moderna Freud descobriu ou inventou o inconsciente?
Tenho dúvidas, mas ele formulou uma hipótese de diferentes estados de consciência, é  chocante, até então o que se debatia não era a consciência “consciente”, era a verbal e a lógica. Ele criou uma visão da mente com outros estados de consciência não-verbais e não facilmente acessíveis. Uma hipótese que ainda está em aberto. Se Freud aparecesse hoje numa convenção, seria um “neurocientista computacional”, um formulador de teorias ou de hipóteses que gente como eu, experimentalista, ia levantar e falar “muito bonito, mas cadê o dado?”

Thiago Domenici O que você está pesquisando pressupõe que quadriplégicos possam voltar a ter movimentos?
A hipótese é: o problema do quadriplégico é que o cérebro continua produzindo comandos motores, só que o sinal não consegue chegar nos músculos porque houve uma interrupção das vias de comunicação. O que fizemos foi demonstrar o princípio de que se pode criar um desvio, pegar o sinal direto do cérebro, usar um chip para decodificar e mandar para um braço mecânico, que teria como finalidade reproduzir a intenção motora da pessoa – como o braço faria se pudesse se mexer. Num primeiro momento, a gente usa uma prótese mecânica para demonstrar o conceito e estamos chegando muito fácil numa demonstração clínica convincente. Ao mesmo tempo descobrimos que, em vez de usar a prótese, podemos revestir o corpo com algo que a gente chama de exoesqueleto: um robô que se veste, com motores, sensores, e fazer o cérebro controlar esse exoesqueleto; daí você vai “carregar” o corpo. É como criar um besouro. O besouro é uma carapaça que se mexe com um corpo todo molenga dentro. Vou ter um corpo paralisado, sendo carregado por esse exoesqueleto que será controlado diretamente pelo cérebro. Não só permitiria que a pessoa retomasse os movimentos, mas forneceria uma terapia para as partes paralisadas, osso, massa muscular, porque você vai gerar movimento e tentar reverter um pouco da atonia e da atrofia. E, a longo prazo, se funcionar, o passo final é  devolver esses sinais que vêm do cérebro para a maquinaria biológica sem o exoesqueleto, aí é difícil, no momento é complicado.  Inventamos uma prótese de locomoção onde o cérebro do macaco na Carolina do Norte comandou um robô no Japão em tempo real. O robô andou de acordo com o comando que veio do cérebro do macaco e mandou de volta os sinais das pernas andando.

Mylton Severiano Quer dizer que isso que vocês estão fazendo já está obsoleto?
Na nossa cabeça já está. Mas isso levou dez anos. E nos próximos dez vamos demonstrar os dois primeiros: fazer gente recobrar a mobilidade com a prótese ou com o exoesqueleto. 
Mas a ciência é muito não-linear. Sempre aparece um louco que tem uma idéia e acelera.

Léo Arcoverde Quando surgiu a história do Instituto?
Sempre tive a idéia de voltar e fazer alguma coisa no Brasil. Era preciso demonstrar qu alguém podia fazer ciência fora e trazer de volta. Comecei a ir para o Nordeste. Tinha sensação que até o impacto era necessário para demonstrar para o Brasil quão fundamental a
ciência é para o desenvolvimento não só econômico, mas principalmente educacional e social
– os exemplos da Coréia, Taiwan: o que mudou esses países foi o redirecionamento do processo educacional. Era preciso ir para um lugar onde cientista nenhum iria e provar que o talento científico brasileiro existe em qualquer lugar, no Capão Redondo como em Macaíba. O que não existe é oportunidade para esse talento aflorar. Quer dizer, você não oferece ao potencial humano brasileiro nem o método nem as oportunidades para que o método seja aplicado. Para que as pessoas possam perseguir sua imaginação, porque ciência é isso, é ter uma idéia, achar que vai funcionar e ir atrás. Daí que você vê quem é cientista – não é diploma, não é passar na banca, não é ter título. É o cara que tem uma idéia criativa, aplica métodos rigorosos para testar e que persiste. Noventa por cento da ciência é persistência.

Vinícius Souto Como o pessoal de fora enxerga sua experiência no Brasil?
O pessoal está atônito. Quando apresentei o projeto de Natal em Davos, na Suíça, em janeiro, foi curioso. Estava do lado de colunistas, um deles famoso aqui, ouvindo gente falar do Brasil o tempo inteiro, ia no computador na manhã seguinte, abria nos jornais de São Paulo e ninguém falava nada. Vi um economista argentino falar bem do Brasil. Chorando, emocionado, “é um exemplo, é um país que está dando um show”. No dia seguinte, não tinha uma palavra. No meu dia, vou falar sobre um projeto educacional, mostrei: “A ciência não é só para ser feita em universidade, ficar em prédio fechado, é para se abrir para o mundo.” Tinha acabado de sair uma carta que assinei com o presidente, primeira vez que um presidente de qualquer país assinou um editorial na Scientific American. 

Mylton Severiano Quem? O Lula?
É. Não saiu em lugar nenhum. Estava na capa da maior revista de ciência do mundo, o presidente, o ministro da Educação, se comprometendo a levar o currículo de educação científica infanto-juvenil desenvolvido em Natal para 1 milhão de crianças brasileiras. Mostrei as crianças montando robô, usando telescópio, medindo lua de Júpiter.

Mylton Severiano Lá em Natal?
Em Macaíba, na periferia de Natal. Foi um choque. Mas só fora daqui saiu nos jornais, saiu na Scientific American, na Science, na Nature, nas grandes revistas do mundo.

Roberto Manera Qual é a parte da grande imprensa nisso?
Ah, omissão. Cheguei à conclusão que hoje no Brasil é difícil falar bem do Brasil. Existe uma cultura de se confundir o país com quem está no governo. E a gente não pode contar boas notícias. É uma coisa meio assustadora, não consigo entender.

Mylton Severiano Porque o presidente não é doutor?
Pode ser. Mas acho que o buraco é mais embaixo: não podia dar certo. O governo dele tinha de ser o pior da história do Brasil. E se você analisar os fatos friamente e objetivamente,  não é. Se você passar duas semanas no interior do Rio Grande do Norte, da Paraíba, é outro Brasil. A gente respira aquele país que, quando eu era criança, me diziam que nunca seria possível se fazer. [Nesse momento Nicolelis chora] E é chocante, você só consegue falar sobre isso fora daqui. O Brasil, de certa maneira, carrega hoje a responsabilidade de ser uma das poucas boas esperanças no mundo. De preservar seu  ambiente, construir um país honesto, que cresça não à custa de outro, mas à custa do seu próprio trabalho, um país que tem uma democracia explodindo, não? Eu coloquei na minha porta na Universidade de Duke: 95 milhões de votos contados em quatro horas. Qualquer semelhança é pura coincidência. Eu me tornei mais brasileiro vivendo fora daqui. E acho inconcebível que nossas crianças cresçam sem apreciar a diferença entre patriotismo barato e verdadeiro amor pelo Brasil. Têm direito ao acesso à informação legítima, honesta e limpa. Para saber que país é, quais são os problemas, mas quais são as maravilhas do Brasil... [chora novamente]. Tem duas piadas que me deixam possesso. Uma é quando alguém fala, aqui, que “isto é coisa de primeiro mundo”. Que primeiro mundo? E a segunda é que “Deus criou esse maravilhoso país, mas deixa ver o povinho que vou pôr lá”. É o ranço do coronelismo. É inserir no genoma nacional o complexo de inferioridade. O Santos Dumont não pensou que não era do primeiro mundo quando voou, não pensou no “povinho”, ele foi e fez. E acho que o que nós não sabemos é que existem milhões de outros Brasis que estão se fazendo está lá em Resende, em Lages, no Seridó, no sertão da Paraíba, em Soares, em lugares que a gente nem considera como parte da gente. E aqui nós não apreciamos isso.

Thiago Domenici Quando você mostrou o projeto ao Lula?
Foi genial. Estávamos no meu escritório, na minha casa, assistindo televisão, na Carolina do Norte. Vejo o discurso de vitória de um cara que conheci rapidamente, que veio da miséria e virou presidente do Brasil, e está anunciando que quer construir outro país. Virei pro Sidarta, cientista meu amigo: “É agora.”  Escrevemos, fizemos contato. Em 2002. Vim em março de 2003 e fui me encontrar com ele em 2004. Declarei a intenção de criar o projeto no lugar em que cientista nenhum iria, e se funcionasse em Macaíba iria funcionar em qualquer lugar. Trouxe quarenta neurocientistas do mundo inteiro para Natal, para o simpósio que inaugurou a idéia, em fevereiro de 2004. Recebi um convite para ir ver o presidente. Foi emocionante, tinha dado carona para ele uma vez, no sindicato dos médicos, quer dizer, um cara que contei piada do Palmeiras e do Corinthians era presidente da República. E ele mandou todo o mundo sair da sala, me deu um abraço e disse: “Vai em frente que eu estou aqui.” [Chora novamente.]  E nós fomos em frente.

Mylton Severiano Governo federal, estadual e municipal, você tem apoio?
O maior apoio foi do governo federal, mas o mais relevante é que a gente não só conseguiu construir isso, como conseguimos pegar mil crianças da rede pública, de escolas que as pessoas não davam esperança alguma, colocar em um ambiente de laboratório, de liberdade, de criatividade e mostrar para elas que o céu era o limite. E quando vim falar com certas pessoas aqui em São Paulo, falaram: “Não vai sair nada.”

Thiago Domenici Pessoas do governo? 
Não, cientistas: “Você está louco, não tem massa crítica, não vai sair do lugar”, e hoje você vê criança que antes queria ser jogador de futebol dizer  que quer ser químico. Estão montando robô, outro programando chip aos 12 anos. 

Vinícius Souto Quais as principais características?
O projeto tem um centro de pesquisa onde começamos a trazer brasileiros que estavam fora, neurocientistas, como o Sidarta. Jovens que estavam fora ou pelo Brasil sem conseguir  penetrar no sistema acadêmico público, levamos pra lá e o núcleo Coração, um centro de pesquisa ligado com centros de ponta do mundo inteiro. Em volta criamos o projeto  educacional, e criamos um centro de saúde de atendimento à mulher e à criança, para gestação de alto risco; câncer da mulher; e problemas de neuropediatria. Agora estamos construindo um Campus do Cérebro, para 5 mil crianças, tempo integral, é essa que vai começar desde a gravidez, o Instituto propriamente dito, e vamos começar ações de integração com a comunidade. Queremos criar um pólo de desenvolvimento industrial, tecnológico,  biotecnologia, porque o semi-árido é o único bioma naturalmente brasileiro, ninguém tem algo como a caatinga, e nós não devotamos nem em prosa, nem em verso, nem em orçamento o suficiente para estudar isso. Precisa ir lá, tirar foto, conversar com o povo, isso ninguém quer fazer porque dá trabalho.

Marcos Zibordi Quanto custa uma coisa dessa?
Esse projeto custa muito dinheiro. Até agora, com tudo que arrecadamos fora, setenta por cento é privado: doações, contratos de pesquisa, a Duke University me deu um contrato,doou equipamento, dinheiro. Está mudando o perfil do lugar. O Campus do Cérebro vai custar 42 milhões de reais. Só que os dinheiros não estão todos aqui, mas estão empenhados. 

Léo Arcoverde E os educadores?
Recrutamos professores formados pelas universidades do Nordeste, e fizemos um retreinamento, agora estamos trazendo professores da rede pública a participar dos laboratórios. O primeiro sinal que o projeto estava funcionado é que os professores da rede pública começaram a comentar que estava até criando problema na escola, “seus alunos fazem muita pergunta”... Essas crianças têm perguntas que desafiam gente experimentada. Ensinar é isso, essa troca.

Mylton Severiano Mas voltando ao Brizola, que falou que se até seis anos não formar o “computador” queima, essa criança tem chance mesmo “queimada”?
Tem. Existe uma coisa que chama plasticidade cerebral. O exemplo que uso é o Garrincha. Tinha um joelho olhando pro outro, passou fome, teve deformidades ósseas e distúrbios neurológicos, certamente faltou proteína pro cérebro. O controle motor do Garrincha ninguém discute haja vista o beque da União Soviética na Copa de 1958. O ditado “cachorro velho não aprende truque novo” não é verdade. O cérebro consegue, principalmente na primeira infância, se adaptar a condições adversas, os circuitos se rearranjam. Agora, esse primeiro período dos seis anos, ou três, é vital, é o momento onde você tem que ter o aporte nutricional e o educacional.

Marcos Zibordi Imagino que o Instituto é mais um mundo mágico. 
Uma menina, quando o presidente foi visitar, ele perguntou: “O que você acha dessa escola?”, a menina “Que escola?”, “Essa aqui”, e a menina “não, isso aqui não é escola não, é parque de diversões”.

João de Barros Esses pesquisadores já estão estudando?
Estão estudando modelos de doença de Parkinson, coisas relacionadas à neurofisiologia do sono, o que o cérebro faz quando a gente vai dormir. A codificação neural, como o sistema nervoso codifica informação.  Estudamos o que está na agenda da neurociência mundial. Natal está ligada a vários institutos do mundo. Em julho vamos ter a primeira escola de altos estudos de neurociência do Brasil, 28 neurocientistas do mundo inteiro vão passar de quatro a oito semanas dando aula por teleconferência para todos os alunos de neurociência do Brasil, de pós-graduação, a partir de Natal.

Marcos Zibordi A comunidade científica criticou sua proposta, como se você estivess e descredibilizando a neurociência brasileira.
Nunca me preocupei com isso. Sou cria do pai da neurociência brasileira. Seria impossível, a não ser que eu perdesse o lóbulo préfrontal, esquecer de onde vim. Prova maior é que voltei, não precisava voltar. Esse negócio que não tem dinheiro, dinheiro tem, é só  ir atrás e fazer algo que justifique o dinheiro. A única pessoa que levantou questões, quando interpelada para provar, fugiu da rinha. E tudo o que veio a público aqui foi feito de maneira aberta. O governo federal foi simpático à nossa causa? Claro. Por que não poderia ser? 

Marcos Zibordi Uma das ações do instituto foi patrocinada pela Agência de Projeto
de Defesa dos Estados Unidos. Por que achei estranho?
Porque não existe isso no Brasil. As próteses que comecei a criar podem ser uma terapia para pessoas quadriplégicas ou paraplégicas. Com o crescimento do número de veteranos de guerra com lesões na medula espinal por causa da guerra, então o Departamento de Defesa criou uma verba de pesquisa para gerar novas terapias. E estamos conseguindo. Vai ser anunciado um braço robótico para pacientes que perderam membros superiores que vai ser implantado no ombro deles, comandado pelo sistema nervoso com técnicas que a gente fez. E quando assino esse barato está claro e explícito que jamais trabalharia em qualquer linha que não fosse de reabilitação médica.

Marcos Zibordi Se nós temos tanta dificuldade para patrocinar pesquisa, o que o senhor acha do fato de não se conferir o resultado final? Como funciona fora daqui?
Se você terminar um projeto de cinco anos e não produzir trabalhos, publicados em grandes revistas e com um selo de aprovação, sua carreira acabou. A seleção natural lá é grande. Que é um dos problemas aqui: se financia tudo. Se falta dinheiro, teria que ter uma
visão um pouco mais crítica. O que vamos financiar? Qual é nossa visão estratégica de ciência? O que o Brasil precisa? O que queremos desenvolver da inteligência nacional? Ciência é hoje uma questão de soberania nacional, uma questão estratégica da humanidade e uma contribuinte vital para a preservação da democracia no mundo. Porque se não  ajudar a produzir comida, novas formas de energia, de curar doenças, a espécie acaba.  A ciência está no vértice das decisões. O Brasil precisa de uma nova cultura universitária. Tem que abrir as portas das universidades para o Brasil. Precisa de uma nova visão acadêmica. Tudo isso tem que passar por uma discussão, e a sociedade precisa fazer essa discussão munida do conhecimento da informação. A ciência é uma questão estratégica, só que não recebe do ponto de vista político a devida relevância. A questão das células embrionárias não é religiosa, uma questão técnica, também estratégica. 


Moriti Neto O governo George Bush é ultraconservador. A comunidade científica enfrentou dificuldades?
Estou há vinte anos nos Estados Unidos: é o período mais difícil e opressor que já passei na América. Você sente que não tem liberdade de manifestar sua opinião. E sinto que o Brasil  caminha seriamente para impor restrições na nos sa vida cotidiana que vêm de uma posição  religiosa dogmática. Nos Estados Unidos é pior, ao ponto de certos professores serem repreendidos por falar em Darwin no departamento de biologia.

Thiago Domenici Como você encara ser considerado o cientista brasileiro vivo mais importante e um dos vinte mais importantes do mundo, que pode ganhar o Nobel? 
É difícil comentar isso. O Brasil merecia vários Nobéis, o Carlos Chagas, Santos Dumont podia ter ganhado o de física. Isso não quer dizer que não ficaria feliz se um brasileiro ganhasse o Nobel.

Vinícius Souto Como você enxerga essas crianças que estudam no instituto daqui alguns anos?
Sempre falo para eles que são embriões de um exército de sonhadores. A noção de que você pode sonhar alto, como Santos Dumont sonhou. Minha esperança é essa.

João de Barros Que cientistas brasileiros você admira?
Tive o privilegio de ver o Mário Schenberg falar. Era brilhante, aquele raciocínio abstrato,  tentar explicar o que é o universo, a matéria. O doutor César, você chegava na aula de  neurociência e estava tocando a abertura de uma ópera qualquer – ele considerava compor uma ópera o exercício mais profundo, uma tempestade elétrica.

Marcos Zibordi O gol de bicicleta também. 
Depende de quem faça. Se fosse o Leivinha... A Nature me pediu um dia para escrever.  É aquilo que você espera a tua vida inteira, o editor da Nature telefonar: “dá para você escrever uma revisão pra nós?”. O mundo pára, o filho pode cair da escada, cachorro pode ficar sem comida.

Mylton Severiano O que é uma revisão?
É um artigo que não é só baseado em dados que você coletou, mas a sua opinião. Você
tem uma chance ou duas na vida de uma revista dessas pedir sua impressão. Ele queria que eu explicasse como as teorias do cérebro se inseriam nessa questão que eu sempre falava em meus trabalhos, de libertar o cérebro do corpo para ele controlar à distância um membro artificial. Ele disse: “Você precisa de um parágrafo que resuma toda a dimensão do que o cérebro é capaz de fazer. Daqui uma semana, mande só o primeiro parágrafo, para eu saber se você consegue escrever o troço.” Olha o que fiz: descrevi sob o ponto de vista de uma criança, que era eu, assistindo televisão, o primeiro gol do Pelé contra a Itália na Copa do México em 1970. O  Tostão cobrando o lateral, o Rivelino levantando a bola, a torcida já levantando atrás do gol, porque eles já tinham visto mil vezes quando a bola sobe para a área e “o cara” levanta, não tem jeito! A expressão de dor que tem no filme, de frente para o gol italiano: o Albertozzi torcendo toda a face, porque sabe que não tem jeito. E o Facchetti, um cara grandão, levanta só para cumprir com o dever, porque “o homem” já vinha correndo. Descrevi isso do ponto de vista do cérebro. A coordenação da visão vendo a bola no ar rarefeito da Cidade do México, a torcida já celebrando, a bola entrando e o mundo  explodindo. Eu tinha nove anos e ouvi um troço explodindo lá fora. E para o resto da minha vida gol era uma explosão, porque meu cérebro associou a imagem do gol com o som dos fogos de artifício por toda a cidade. Liguei para o editor: “olha, modifique o que quiser, mas o primeiro parágrafo é inegociável”. Esse editor me manda um emeio assim: “eu lembro desse gol”. O trabalho estava aceito!

Mylton Severiano O senhor vai repatriar outros cientistas, não? 
Sim, parte do projeto Natal é repatriar os cérebros. O Brasil tem 11 mil cientistas no exterior.  São trinta anos de gente indo embora. Mas eu não acredito que o voltar ou existir seja necessariamente só físico. Fui fisicamente porque me disseram que não tinha futuro aqui, entendeu? Fui embora, mas o Brasil nunca foi embora de mim. Acho que muita gente que está fora que foi e aprendeu algo, algo genial, que poderia voltar e ajudar o país, o que a gente precisava é falar “volta, vem pra cá! Está na hora de construir o Brasil”