domingo, 14 de dezembro de 2008

Iluminando os meandros do cérebro

Uma promissora combinação entre óptica e genética vem permitindo aos neurocientistas mapear e até controlar os circuitos cerebrais com precisão inédita por Gero Miesenböck
ALFRED T. KAMAJIAN
LUZ ORIENTADORA: Novos métodos que empregam a luz para revelar e controlar a atividade neural têm possibilidade de investigar os circuitos individuais em animais – estudo que deve também facilitar a compreensão do funcionamento do cérebro humano.
Em 1937 o grande neurocientista sir Charles Scott Sherrington, da University of Oxford, expôs o que viria a se tornar uma descrição clássica do cérebro em funcionamento. Ele imaginou pontos de luz sinalizando a atividade das células nervosas e suas conexões. Segundo ele, durante o sono profundo somente umas poucas partes remotas do cérebro brilhariam, dando ao órgão a aparência de um céu de noite estrelada. Mas ao despertar, “é como se a Via Láctea iniciasse uma verdadeira dança cósmica”, ele pondera. “Rapidamente a massa encefálica se transforma num tear encantado, onde milhões de agulhas cintilantes tecem um padrão dissolúvel –, mas nunca durável; uma verdadeira harmonia de padrões secundários alternantes.”

Embora Sherrington certamente não tenha percebido à época, sua metáfora poética abrigava um conceito científico importante, ou seja, revelava o funcionamento interno do cérebro através da óptica. A compreensão do modo como os neurônios cooperam para elaborar pensamentos e comportamentos permanece um dos problemas sem solução mais complicados da biologia no sentido amplo, principalmente porque os cientistas em geral não podem ver os circuitos neurais em ação. O procedimento padrão que investiga um ou dois neurônios com eletrodos revela apenas fragmentos de um todo, um quebra-cabeça complexo, mas incompleto. Assim, o sucesso em observar a comunicação entre os neurônios permitiria deduzir como os circuitos cerebrais se formam e como funcionam. Este conceito fascinante tem inspirado neurocientistas na tentativa de tornar real a visão poética de Sherrington.

Seus esforços deram origem a um novo campo chamado optogenética, uma fusão da engenharia genética com a óptica, para investigar tipos de células específicos. Pesquisadores já obtiveram êxito em visualizar as funções de vários grupos de neurônios. Além disso, a abordagem permitiu controlar de fato os neurônios remotamente, simplesmente ao ativar um interruptor de luz. Essas conquistas indicam a possibilidade de que, um dia, a optogenética possa desvendar os circuitos cerebrais e, quem sabe, até vir a ajudar no tratamento de certas doenças.

TIRADO DE “VIDEO-RATE NONLINEAR MICROSCOPY OF NEURAL MEMBRANE DYNAMICS WITH GENETICALLY ENCODED PROBES, ” BY ROBERT D. ROORDA, TOBIAS M. HOHL, RICARDO TOLEDO-CROWE, GERO MIESENBÖCK,
ESCUTA ÓPTICA: Equipando os neurônios com sensores moleculares que emitem luz quando essas células são ativadas, os neurocientistas rastreiam o processamento de informações conforme ele acontece nos circuitos neurais. A seqüência de quadros do vídeo acima, por exemplo, rastreou a atividade de neurônios sensíveis ao cheiro que afetam áreas específicas (circuladas) do cérebro de uma mosca. A estimulação desses neurônios levou a um aumento de fluorescência (pontos azuis), que acalmam as células silenciadas.




Informação Neural
As tentativas para concretizar a visão de Sherrington tiveram início na década de 70. Como os computadores, o sistema nervoso funciona a eletricidade; os neurônios codificam informações em sinais elétricos, ou em potenciais de ação. Esses impulsos, com tensões menores que um décimo de uma pilha AA, induzem uma célula nervosa a liberar moléculas neurotransmissoras que então ativam ou inibem células conectadas num circuito. Num esforço para tornar esses sinais elétricos visíveis, Lawrence B. Cohen da Yale University testou a capacidade de responder a diferenças de potencial com mudança de cor ou de intensidade de um grande número de corantes fluorescentes. Ele descobriu que alguns corantes de fato têm propriedades ópticas sensíveis à tensão elétrica. E tingindo neurônios com esses corantes, Cohen pôde observar sua atividade com um microscópio.

Ao reagir não a mudanças de tensão, mas ao fluxo de átomos carregados específicos, ou íons, os corantes ainda podem revelar o disparo neural. Quando um neurônio gera um potencial, os canais das membranas se abrem e íons de cálcio entram na célula, o que estimula a liberação de neurotransmissores. Em 1980 Roger Y. Tsien, hoje na University of California, em San Diego, começou a sintetizar corantes que poderiam indicar variações na concentração de cálcio, alterando a intensidade da luminescência com que brilhavam. Esses indicadores ópticos se mostraram extraordinariamente valiosos, abrindo novas janelas sobre o processamento de informações em neurônios simples e redes pequenas.

Mas os corantes sintéticos sofrem de um grave revés. O tecido neural é composto de muitos tipos de células diferentes. Estimativas sugerem que o cérebro de rato, por exemplo, comporta várias centenas de tipos de neurônios, além de vários tipos de células de suporte. Como as interações entre tipos específicos de neurônios formam a base do processamento da informação neural, para entender como um determinado circuito funciona devemos identificar e monitorar os agentes individuais e apontar quando eles são ligados e desligados. Como os corantes sintéticos colorem todos os tipos de células indiscriminadamente, em geral é impossível rastrear a origem dos sinais ópticos nos tipos específicos de células.



POR SUSANA Q. LIMA E GERO MIESENBÖCK, EM Cell, VOL. 121, NO 1; 2005, REPRODUZIDO COM AUTORIZAÇÃO DA ELSEVIER (padrões de atividade)
PADRÕES DE ATIVIDADE das moscas das frutas cujos neurônios produtores de dopamina foram concebidos para serem fotossensíveis mudaram dramaticamente quando os animais foram expostos a flashes intermitentes de luz. As moscas passaram de mal se mover (acima) a inspecionar em detalhe seus arredores (abaixo), reforçando a teoria de que a dopamina estimula o comportamento explorador.


Genes e Fótons
A optogenética nasceu da percepção de que a manipulação genética pode ser a solução para resolver este problema da pigmentação indiscriminada. Todas as células de uma pessoa contêm os mesmos genes, e o que distingue duas células entre si são as diferentes combinações de genes, ativados e desativados, em cada uma delas. Os neurônios que liberam o neurotransmissor dopamina, por exemplo, ao disparar precisam do maquinário enzimático para produzir e embalar a dopamina. Os genes que codificam os componentes desse maquinário são então ativados nos neurônios produtores de dopamina (dopaminérgicos); no entanto, permanecem desativados nos outros, não-dopaminérgicos.

Em teoria, se um interruptor biológico que acionou um gene produtor de dopamina estivesse ligado a um gene que codifica um pigmento, e o sistema interruptor-pigmento fosse construído dentro das células de um animal, este produziria o pigmento apenas em células dopaminérgicas. Se pudéssemos examinar o interior do cérebro dessas criaturas, veríamos as células dopaminérgicas funcionando, virtualmente, isoladas de outros tipos de células. Além disso, poderíamos observar estas células no cérebro ativo.

Os corantes sintéticos não podem realizar esse tipo de magia, porque sua produção não é controlada pelos interruptores genéticos, ativados somente em determinados tipos de células. O truque funciona apenas quando o corante é codificado por um gene – ou seja, quando o pigmento é a proteína. As primeiras demonstrações de que corantes codifica dos geneticamente podiam registrar atividade neural ocorreram há uma década, por equipes lideradas independentemente por Tsien, Ehud Y. Iasacoff da University of California, Berkeley, e por mim e James E. Rothman, hoje na Yale University.



m todos os casos o gene para o corante foi emprestado de um organismo marinho luminescente, tipicamente uma água-viva, que produz uma proteína verde fluorescente. Nós ajustamos o gene para que a proteína produzida pudesse detectar e revelar as mudanças na voltagem ou no cálcio subjacentes realçando a célula, bem como a liberação dos neurotransmissores que permitem a sinalização entre células. Munidos desses sensores de atividade codificados geneticamente, nós e outros pesquisadores criamos animais em que os genes codificados podiam ser ativados apenas em grupos de neurônios precisamente definidos. Muitos organismos prediletos dos geneticistas – incluindo minhocas, peixes zebra e ratos – foram analisados até o momento dessa forma, mas as moscas-das-frutas têm se mostrado particularmente prontas a revelar seus segredos diante da investida conjunta da óptica e da genética. Seu cérebro compacto é visível através de microscópio, sendo que circuitos inteiros podem ser registrados num único campo de visão. Além do mais, as moscas são facilmente modificadas geneticamente e um século de pesquisas conseguiu identificar muitos dos interruptores genéticos necessários para direcionar grupos específicos de neurônios. De fato, foi em moscas que Minna Ng, Robert D. Roorda e eu, todos à época no Memorial Sloan Kettering Câncer Center, em Nova York, registramos as primeiras imagens do fluxo de informações entre séries de neurônios em um cérebro intacto. Desde então, descobrimos novos arranjos de circuitos e novos princípios de funcionamento. No passado descobrimos neurônios no conjunto de circuitos de processamento de cheiros das moscas que parecem injetar um “ruído de fundo” no sistema. Especulamos que o barulho adicionado amplifica estímulos fracos, aumentando assim a sensibilidade do animal ao cheiro – uma vantagem na busca por alimento.

Os sensores se tornaram poderosas ferramentas para a observação da comunicação entre neurônios. Mas, no fim da década de 90, ainda tínhamos um problema. A maioria das experiências que investigam a função do sistema nervoso é muito indireta. Os pesquisadores estimulam a resposta no cérebro expondo o animal a uma imagem, um som ou um aroma e tentam chegar ao caminho resultante inserindo eletrodos e medindo os sinais elétricos captados nessas posições. Infelizmente as entradas sensoriais sofrem uma reformatação completa enquanto viajam. Assim, identificar com exatidão a que sinais se referem as respostas registradas a uma determinada distância do olho, ouvido ou nariz torna-se ainda mais difícil, quanto mais se distancia desses órgãos. Para os muitos circuitos cerebrais que, em lugar do processamento sensorial, dedicam-se ao movimento, pensamento ou emoção, a abordagem falha completamente: não há uma forma direta de ativar esses circuitos com estímulos sensoriais.

Da Observação ao Controle
A capacidade de estimular grupos específicos de neurônios diretamente, sem depender de estímulo externo para órgãos sensoriais, amenizaria esse problema. A questão, agora, era se conseguiríamos desenvolver um conjunto de ferramentas que não apenas fornecessem sensores para monitorar a atividade das células nervosas, mas também que possibilitasse a ativação imediata de tipos de neurônios específicos. Eu e Boris V. Zemelman, que atualmente trabalha no Howard Hughes Medical Institute, abraçamos esse problema. Sabíamos que se conseguíssemos programar um acionador, ou disparador, codificado geneticamente e controlado pela luz nos neurônios, superaríamos diversos obstáculos que detinham os estudos sobre circuitos neurais, usando eletrodos. Como o número de eletrodos que podem ser implantados no sujeito de um teste simultaneamente é limitado, com esta abordagem os pesquisadores conseguem ouvir ou excitar apenas um pequeno número de células por vez. Além disso, em determinados tipos de células, os eletrodos são alvos difíceis. E como deveriam ficar imóveis, impedem as experiências com animais móveis. Se pudéssemos recorrer a um interruptor liga/desliga para nos ajudar a encontrar mtodos os neurônios relevantes (os produtores de dopamina, por exemplo) e usar a luz para controlar essas células sem a nossa interferência, não precisaríamos saber com antecedência sua localização no cérebro para estudá-los. E não importaria se suas posições se alterasse conforme o animal se movimenta. Se a estimulação das células que contêm os acionadores despertasse uma mudança de comportamento saberíamos se essas células estariam operando nos circuitos que regulam esse comportamento. Ao mesmo tempo, ao fazer com que essas mesmas células carregassem um gene sensor, as células ativas se acenderiam, revelando sua localização no sistema nervoso. Supostamente, ao reconduzir a experiência repetidas vezes em animais isolados, para apresentar um tipo de célula diferente contendo um acionador, conseguiríamos juntar as peças de uma seqüência de eventos resultantes de excitação neural do comportamento e identificar todos os atores no circuito. Tudo o que precisávamos fazer seria descobrir um acionador geneticamente codificável que pudesse transformar um flash de luz em um pulso elétrico.

Para encontrar um acionador como esse decidimos que seria preciso verificar as células que geram sinais elétricos respondendo à luz, como os fotorreceptores dos nossos olhos. Essas células contêm uma antena que absorve a luz, chamadas rodopsinas, que, quando iluminadas, instruem os canais de íons nas membranas celulares a abrir ou fechar, alterando assim o fluxo de íons e produzindo sinais elétricos. Decidimos transplantar genes que codificam essas rodopsinas (mais alguns genes auxiliares necessários à função da rodopsina) em neurônios cultivados em uma placa de Petri. Pudemos então testar se a luz brilhante na placa levaria os neurônios a disparar. Nosso experimento funcionou – no início de 2002, quatro anos depois do desenvolvimento dos primeiros sensores geneticamente codificados aptos a relatar a atividade neural, estrearam os primeiros acionadores codificados geneticamente.



Moscas Controladas Remotamente

Recentemente pesquisadores listaram outras proteínas fotossensíveis, como a melanopsina, encontradas em células especializadas da retina que ajudam a sincronizar o ciclo circadiano com a rotação da Terra, como sendo acionadores. E o esforço conjunto de Georg Nagel do Instituto Max Planck de Biofísica em Frankfurt, Karl Deisseroth da Stanford University e Stefan Herlitze da Case Western Reserve University demonstraram que outra proteína, chamada canal-rodopsina 2 – que orienta os movimentos das algas – está apta a esta função. Há também uma variedade de acionadores codificados geneticamente que podem ser controlados via substâncias fotossensíveis sintetizadas por nós e por Isacoff e seus colegas da U. C. Berkeley, Richard H. Kramer e Dirk Trauner.

O passo seguinte foi demonstrar que nosso acionador funcionaria em um animal vivo, desafio que propus a Susana Q. Lima. Para conseguir provar esse princípio concentramo-nos em um circuito particularmente simples das moscas, constituído de uns poucos punhados de células. Sabia-se que esse circuito controlava um comportamento incorrigível: um reflexo de fuga dramático, em que o inseto rapidamente estende suas pernas para ter impulso para abrir suas asas e voar. O disparo inicial para essa seqüência de ações é um impulso elétrico emitido por dois dos cerca de 150 mil neurônios no cérebro da mosca. Esses chamados neurônios de comando ativam um circuito subordinado chamado de padrão gerador que instrui os músculos da mosca a mover seus braços e asas.

Descobrimos um interruptor genético que está sempre ativo nos dois neurônios de comando, e em nenhum outro – e um outro interruptor que fica ativo em neurônios do padrão gerador, mas não nos neurônios de comando. Usando esses interruptores preparamos moscas em que ambos os neurônios de comando e os neurônios geradores de padrão produziram nosso acionador fotoguiado. Para nossa satisfação, ambos os tipos de moscas levantaram vôo num flash de raio laser, que era intenso o bastante para penetrar a cutícula dos animais intactos e alcançar o sistema nervoso. Isso é uma confirmação de que as células de comando e geradoras de padrão participaram do reflexo de fuga, provando que os acionadores funcionaram como esperado. Como apenas os neurônios relevantes continham o acionador codificado geneticamente, eles “souberam” responder sozinhos ao estímulo óptico. Foi como transmitir uma mensagem pelo rádio para uma cidade com 150 mil residências, sendo que um número reduzido delas possuía o sintonizador necessário para decodificar o sinal, que ficou inaudível para as restantes.

Contudo, restava um dilema. Os neurônios de comando que originavam o reflexo de fuga estavam ligados a estímulos ópticos. Esses estímulos ativavam o circuito de fuga durante a transição da interrupção da luz, como acontece quando o vulto de um predador faz sombra. (Isso é evidente quando tentamos esmagar uma mosca: sempre que nossa mão se aproxima, o inseto voa, para nossa frustração.) Temíamos que no nosso caso o reflexo de fuga pudesse ser uma reação visual ao pulso do laser e não um resultado do controle óptico direto dos circuitos de controle ou de geração de padrão.

Para eliminar esse temor conduzimos um experimento terrivelmente simples: degolamos as nossas moscas. Restaram-nos então machos sem cabeça (que sobrevivem por um ou dois dias ) carregando um circuito gerador de padrão no interior dos gânglios torácicos, que formam um equivalente grosseiro da coluna vertebral dos vertebrados. A fotoativação desse circuito impulsionou os corpos no ar, que, sem isso, permaneceriam imóveis. Embora seus vôos sempre começassem com grande instabilidade e culminassem com colisões ou quedas espetaculares, sua simples existência provou que o laser controlou o próprio circuito gerador de padrão – esses animais descabeçados não podiam detectar a luz e nem reagir a ela de outro modo. (E suas manobras desajeitadas ainda mostraram vividamente que a grande inovação na aviação foi o vôo motorizado controlado, e não simplesmente o vôo motorizado.)

Também concebemos moscas com fotointerruptores acoplados apenas aos neurônios produtores do neurotransmissor dopamina. Quando expostas ao flash do laser essas moscas se tornam repentinamente mais ativas. Estudos anteriores indicavam que a dopamina ajuda os animais a predizer a recompensa e a punição. Nossas descobertas com as moscas corroboram esse cenário: além de mais ativos, os insetos também exploraram seu meio ambiente de forma diferente, como se reagindo a uma expectativa de ganho ou de perda alternada.

Um Precursor Inesperado
Três dias antes da publicação agendada dos relatos dessas experiências na revista Cell, eu voei até Los Angeles para dar uma palestra. Um amigo havia me dado o romance badalado de Tom Wolfe, recém-lançado, Eu sou Charlotte Simmons, certo de que eu apreciaria a forma como os neurocientistas foram retratados, sem contar o material que rendera ao livro o prêmio de pior sexo pela Literary Review. Durante o vôo li uma passagem na qual Charlotte assiste uma palestra de um certo José Delgado que também controla o comportamento animal à distância – não com acionadores codificados geneticamente fotoguiados, mas com sinais de rádio enviados a eletrodos implantados no cérebro por ele. Delgado, um espanhol, arriscara a própria vida para provar o poder de sua abordagem detendo a investida de um touro furioso. Isso, nas palavras do palestrante fictício de Tom Wolfe, era uma revolução na neurociência – a derrota definitiva do dualismo, a idéia de que a mente existe como uma entidade separada do cérebro. Caso as manipulações físicas do cérebro de Delgado tivessem a capacidade de alterar a mente de um animal, o argumento cairia por terra, pois os dois deveriam ser um só e o mesmo.

Quase caí da poltrona. Delgado era mesmo um personagem fictício ou real? Assim que desembarquei em Los Angeles, fiz uma busca na internet e encontrei uma foto de um matador com o controle remoto e seu touro. Descobri que Delgado havia lecionado na mesma universidade que eu, Yale, e escrevera um livro chamado Controle físico do espírito – Rumo a uma sociedade psicocivilizada, de 1971, em que resumia seus esforços para controlar movimentos, evocando memórias e ilusões, e destacando prazer ou dor (ver “A era esquecida dos primeiros chips cerebrais”, por John Horgan; SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL, ed. 42, novembro de 2005). O livro encerra com uma discussão sobre quais as implicações da capacidade de controlar a função cerebral para a medicina, a ética, a sociedade e até mesmo para a guerra. Com isso em mente não deveria me causar espanto quando, no dia seguinte à publicação do meu artigo, um jornalista americano quis saber ao telefone: “Então, quando vamos invadir outro país com um exército de moscas controladas remotamente?”.

A atenção da imprensa não parou aqui. No dia seguinte, a manchete do Drudge Report alardeava, “Cientistas Criam Moscas Controladas à Distância”, acima da notícia sobre a última aparição de Michael Jackson nos tribunais. Presumi que essa foi a fonte que inspirou uma sátira no programa Tonight Show cerca de uma semana depois, onde o apresentador Jay Leno pilotava moscas controladas remotamente em direção à boca do presidente George W. Bush – a primeira aplicação prática de nossa nova tecnologia.

Desde então pesquisadores vêm utilizando fotointerruptores para controlar outros comportamentos. Em outubro último, Deisseroth e Luis de Lecea, seu colega de Stanford, divulgaram resultados de uma pesquisa com camundongos, em que usaram fibras ópticas para levar a luz diretamente aos neurônios produtores de hipocretina – neurotransmissor na forma de uma pequena proteína, ou peptídeo – para saber se esses neurônios regulariam o sono. Os pesquisadores suspeitavam que a hipocretina tem esse papel pois certas raças de cães, que não apresentam receptores de hipocretina, sofrem crises de insônia. A nova pesquisa mostrou que a estimulação de neurônios da hipocretina durante o sono tendia a acordar os camundongos, reforçando aquela hipótese.

E no meu laboratório em Yale, o pós-doutor J.Dylan Clyne usou acionadores codificados geneticamente para obter pistas sobre as diferenças comportamentais entre os sexos. Os machos de muitas espécies animais chegam ao extremo ao cortejar o sexo oposto. No caso das moscas-das-frutas os machos vibram uma asa para produzir uma “canção” que as fêmeas consideram irresistível. Para investigar as bases neurais desse comportamento exclusivo dos machos, Clyne usou a luz para ativar o gerador de padrões responsável pela canção. Descobriu que as fêmeas também possuíam o conjunto de circuitos produtor de músicas. Mas, sob condições normais, não apresentam os sinais neurais necessários para ativá-lo. Essa descoberta indica que o cérebro de machos e de fêmeas tem em grande parte conexões semelhantes, e que as diferenças no comportamento sexual surgem da ação de interruptores-mestre posicionados estrategicamente para dispor os circuitos no modo masculino ou feminino

Terapia da Luz
Até o momento os pesquisadores conceberam animais para carregar um sensor ou um acionador nos neurônios específicos. Mas é possível equipá-los com ambos. E mais adiante pretendemos conseguir criar sujeitos contendo múltiplos sensores ou acionadores, que nos permitam estudar populações de neurônios de tamanhos variados num mesmo indivíduo.

Nossa autoridade recém-descoberta sobre os circuitos neurais vem criando grandes oportunidades para a pesquisa básica. Mas existem benefícios práticos? Talvez, embora eu considere que eles às vezes provocam muito alarde. O próprio Delgado identificou diversas áreas onde o controle direto da função neural poderia produzir benefícios clínicos: protética sensorial, terapias para doenças motoras (que já se tornaram realidade com a estimulação cerebral profunda no mal de Parkinson), e a regulação do humor e do comportamento. Ele enxergou esses usos em potencial como uma extensão direta e racional da prática médica existente, não como uma alarmante incursão inimiga nos campos minados da ética do “controle da mente”. De fato, delimitar uma fronteira definitiva entre os meios físicos para influenciar a função cerebral e as manipulações de substâncias químicas pode parecer arbitrário, sejam elas drogas psicoativas ou o drinque que ajuda a relaxar no final de um dia puxado. Na verdade, as intervenções físicas podem ser contestavelmente dirigidas e dosadas com maior precisão do que as drogas, restringindo assim os efeitos colaterais.

Alguns estudos começam a explorar a aplicabilidade da optogenética a problemas clínicos. Em 2006, pesquisadores usaram canais de íons fotoativados para restabelecer a fotossensilbilidade em neurônios da retina sobreviventes em camundongos com degeneração de fotorreceptores. Eles utilizaram um vírus para levar o gene codificado da canal-rodopsina 2 até as células, injetando-o diretamente nos olhos dos animais. As retinas reparadas enviaram sinais provocados pela luz ao cérebro, mas ainda não se sabe se esse procedimento teve sucesso em restaurar a visão.

Apesar do apelo teórico a optogenética enfrenta um obstáculo prático significativo em humanos, uma vez que requer a introdução de um gene estranho – aquele codificado com o acionador fotocontrolado – no cérebro. Até o momento a tecnologia da terapia gênica ainda não venceu o desafio, e autoridades sanitárias demonstram tamanha preocupação quanto aos riscos associados que, no presente, esse tipo de intervenção está proibida, exceto se com finalidade estritamente experimental.

A oportunidade imediata proporcionada ao controlarmos os circuitos cerebrais – ou mesmo outras células eletricamente excitáveis, como as que produzem hormônio e as que formam os músculos – é poder revelar novos alvos para drogas; por exemplo, se as manipulações experimentais dos grupos de células X, Y e Z levam o animal a comer, dormir ou arriscar-se, então, X, Y e Z são alvos em potencial para novas drogas para tratar a obesidade, a insônia e a ansiedade, respectivamente. Identificar os compostos que regulam os neurônios X, Y e Z pode resultar na maior eficiência terapêutica para doenças que, até o momento, não são tratadas, ou em novas aplicações para drogas existentes. Há muito ainda a descobrir, mas o futuro da optogenética promete ser brilhante.

CONCEITOS-CHAVE - Neurocientistas tradicionalmente têm estudado o funcionamento do cérebro estimulando e registrando a atividade de células nervosas isoladas com eletrodos. Mas esse método é indireto, tornando a análise de neurônios específicos muito difícil.

- O novo campo da optogenética, que combina engenharia gênica com luz para observar e controlar grupos de neurônios, tem permitido investigar circuitos neurais individualmente – abordagem que irá revolucionar o estudo das funções cerebrais.
—Os editores


[APLICAÇÃO] POTENCIAL TERAPÊUTICO
ALFRED T. KAMAJIAN
A estimulação optogenética pode vir a suplantar a estimulação cerebral profunda (ECP) como forma de tratar o mal de Parkinson, entre outras doenças. A ECP estimula partes do cérebro que controlam o movimento com um marcapasso e um eletrodo implantado, bloqueando assim os sinais nervosos indóceis que provocam os tremores e outros sintomas do mal. A estimulação optogenética tem potencial para agir sobre as células com muito maior precisão que a dos eletrodos usados na ECP. Contudo, para chegar às células corretas para produzir a proteína fotossensível , o tratamento optogenético deve exigir que os pacientes se submetam a uma terapia genética proibida atualmente por questões de segurança.







PARA CONHECER MAIS Transmission of olfactory information between three populations of neurons in the antennal lobe of the fly. Minna Ng, Robert D. Roorda, Susana Q. Lima, Boris V. Zemelman, Patrick Morcillo e Gero Miesenböck, em Neuron, vol. 36, no 3, págs. 463-474; 2002.

Remote control of behavior through genetically targeted photostimulation of neurons. Susana Q. Lima e Gero Miesenböck, em Cell, vol. 121, no 1, págs. 141-152; 2005.

Neural substrates of awakening probed with optogenetic control of hipocretin neurons. Antoine R. Adamantidis, Feng Zhang, Alexander M. Aravanis, Karl Deisseroth e Luis de Lecea, em Nature, vol. 450, págs. 420-424; 2007.

Sex-Specifi c control and tuning of the pattern generator for courtship song in Drosophila. J. Dylan Clyne e Gero Miesenböck, em Cell, vol. 133, no 2, págs. 354-363; 2008.

Jill Taylor: Um derrame de lucidez





Neurocientista sofre derrame e ajuda seu cérebro na recuperação

Americana Jill Bolte Taylor escreveu livro descrevendo experiência.
Ela é neuroanatomista, e ganhou nova perspectiva sobre o cérebro.

Edson Franco Da Galileu

    A neuroanatomista Jill Taylor, frente a frente com um cérebro (Foto: Kip May/Divulgação)

    Em 9 de dezembro de 1996, a neuroanatomista norte-americana Jill Bolte Taylor tinha 37 anos e foi para a cama com uma preocupação: como abastecer o banco de cérebros da Universidade Harvard, onde trabalhava, com órgãos recém-retirados de vítimas de doenças mentais. Na manhã seguinte, seu mundo racional começou a se desintegrar.

    Um coágulo no hemisfério esquerdo (ligado à razão) do seu cérebro provocou um derrame. Assim, ela teve de contar apenas com o hemisfério direito (associado ao pensamento simbólico e à criatividade) em um processo de recuperação que partiu da estaca zero. Quando a mãe da cientista — uma ex-professora de matemática — tentou ensinar o que era 1 + 1, ouviu como resposta: “O que é 1?”.
     Passados 12 anos, uma cirurgia arriscadíssima e muita terapia, Jill voltou a dar aulas — na Faculdade de Medicina da Universidade de Indiana — e diz que já recuperou todos os seus arquivos de memória. Essa experiência rendeu o recém-lançado livro “A Cientista que Curou Seu Próprio Cérebro” (Ediouro) e a escolha pela revista “Time” como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo em 2008. Leia a conversa da doutora com a revista Galileu.

    Pergunta - Passados 12 anos desde o derrame, você acredita que já tenha reaberto todos os seus arquivos mentais? Ou, por exemplo, quando você encontra velhos amigos, eles sempre lembram de coisas que você, em tese, deveria ter na memória sem a ajuda deles?

    Jill Taylor - Passei oito anos em recuperação. Sempre fui muito intuitiva e não me apegava a toneladas de detalhes. Assim, há muitas coisas que eu não codifiquei ou tentei me lembrar. Exemplo disso é o meu bolo de aniversário quando eu completei dez anos. Hoje eu sei como ele era — porque alguém me disse —, mas, antes do derrame, eu não seria capaz de descrevê-lo. Tenho a consciência de que sei coisas sobre o meu passado que ninguém me contou depois do derrame. Assim, acredito que eu tenho a maioria das minhas memórias de volta.

    Pergunta - Mesmo sem experiência médica, sua mãe foi muito eficiente em te ajudar. Foi instinto? Experiência em ensinar?

    Taylor -
    Acho que a experiência e os dons naturais dela, tanto como mãe como boa professora, a prepararam para enfrentar essa situação. Ela prestava muita atenção às minhas necessidades e me ajudava a encontrar minhas próprias soluções para os problemas. Nós falávamos muito sobre o cérebro, assim ela sabia de todos os meus temores. E nós duas concordávamos que nada nem ninguém sabia mais sobre o tratamento mais conveniente do que o meu próprio cérebro. Assim, se ficava cansado, deixávamos que ele dormisse.

    Pergunta - A sua experiência pessoal mudou o modo como você vê e sente os papéis desempenhados pelos dois hemisférios do cérebro?

    Taylor -
    Completamente. Antes do derrame, eu tinha uma visão geral do papel de cada hemisfério, mas eu não tinha a menor idéia de como dizer qual parte do meu cérebro estava contribuindo com qual informação para formar a minha percepção da realidade.

    Pergunta - O que você mudaria na maneira como os derrames são tratados?

    Taylor -
    Eu deixaria as pessoas dormirem quando se sentissem cansadas e iria tratá-las com compaixão quando estivessem acordadas. Assumiria que o cérebro é capaz de se recuperar e o trataria com respeito. Em vez de me referir aos pacientes como “vítimas”, passaria a chamá-los de “sobreviventes”! Falaria que as pessoas “tiveram” um derrame em vez de “sofreram”.

    Pergunta - No livro, você escreveu que tem uma paixão por dissecar corpos. Quando essa paixão começou?

    Taylor -
    Quando eu era uma garotinha de cerca de 8 anos, minha mãe me levou ao Museu de Ciência de Chicago. Havia uma exposição com pequenos fetos e embriões dentro de vidros. As idades variavam de poucas semanas até nove meses. Eu fiquei absolutamente fascinada pela exposição, e esse foi o real começo do meu interesse em dissecação.

    Pergunta - Depois de reconstituir seu hemisfério esquerdo, em que você se assemelha e difere da Jill pré-derrame?

    Taylor -
    Eu continuo tão esperta quanto antes, além de ter as mesmas capacidades cognitivas e intelectuais. Mas agora eu decidi gastar meu tempo fazendo coisas que vão ajudar outras pessoas, em vez de focar toda a minha energia na carreira. Estou mais interessada em ajudar a humanidade, e antes meu principal objetivo era escalar os degraus do mundo acadêmico.

    Pergunta - O fato de ter utilizado com mais freqüência o seu hemisfério direito alterou o seu pensamento? Você se lembra de como ele era antes do derrame?

    Taylor -
    Agora ele está excepcional porque eu dediquei um tempo trabalhando essa parte do meu cérebro. Imediatamente depois do derrame, a sensação de que eu estava criativa era ainda mais clara e excitante. E essa sensação acabou se traduzindo na minha arte com vitrais.

    Pergunta - Por falar em arte, além de confeccionar vitrais, você toca violão. Foi especialmente complicado recuperar esses seus talentos?

    Taylor -
    Foi bem mais fácil que os cálculos matemáticos, mesmo aqueles mais elementares. Isso porque os talentos artísticos estão associados ao hemisfério direito do cérebro. Com a ausência temporária do meu hemisfério esquerdo, esses talentos até melhoraram.

    Pergunta - Se a Jill do passado escrevesse um livro sobre uma experiência pessoal, seria muito diferente desse?

    Taylor -
    Acho que seria um livro sobre algo bem aventureiro, como saltar de um avião. Outra idéia seria uma obra didática sobre o cérebro.