terça-feira, 28 de setembro de 2010

Efeito placebo é extraordinário e muito mal compreendido

HÉLIO SCHWARTSMAN

E-drugs existem há dezenas de milhares de anos e atendem pelo nome de música. O resto é marketing.
Que padrões sonoros afetam o cérebro humano suscitando emoções não é exatamente novidade. É justamente isso que torna a música interessante. Vendedores de e-drugs sugerem que suas faixas são mais poderosas que Beethoven e causam efeitos semelhantes aos de LSD e haxixe. É possível, mas altamente improvável.

O conceito básico por trás das e-drugs são os sons binaurais. São produzidos quando cada um dos ouvidos é submetido a tons ligeiramente diferentes. Assim, se o nosso ouvido esquerdo captar um som com uma frequência de 97 Hz, e o direito, de 103 Hz, o cérebro irá perceber um diferencial de 6Hz e, num esforço de sincronização, tende a operar nessa frequência, que, no caso, corresponde à das ondas teta (4 a 7 Hz), associadas ao sono REM (com sonhos). Ao menos em teoria, a pessoa irá sentir-se gradualmente mais relaxada e sonolenta.

O efeito das ondas binaurais é real e foi descoberto em 1839 pelo físico prussiano Heinrich Wilhelm Dove. O que ainda não foi demonstrado é que padrões sonoros binaurais possam induzir muito mais do que estados de excitação e relaxamento. Dizer que causam alucinações, orgasmos e êxtases religiosos é uma afirmação retumbante que deveria ser acompanhada de evidências igualmente bombásticas.

Até agora, elas ainda não apareceram. Só o que existe são relatos de pessoas que dizem ter experimentado essas sensações publicados no site de empresas que comercializam as e-drugs. Mesmo que demos crédito a esses indícios anedóticos, eles são melhor explicados pelo efeito placebo do que por mecanismos cerebrais mais exóticos.

Aqui é preciso um certo cuidado. Dizer que uma dada manifestação se deve ao efeito placebo está longe de significar que ela não exista. O placebo é, a um só tempo, um dos mais extraordinários aspectos da neurologia humana e um dos mais mal compreendidos. Ele é extraordinário porque mostra que o cérebro produz reações que normalmente só ocorrem com recurso a drogas poderosíssimas. E é mal compreendido porque costuma ser descrito meio pejorativamente como algo que "está apenas na sua cabeça".

A verdade, contudo, é que o efeito placebo é bastante poderoso e incrivelmente real. Só não o utilizamos a torto e a direito na medicina por razões éticas. Placebos sempre envolvem algum grau de enganação. A confiança no médico e parte do efeito curativo se perdem se o paciente descobre que estava tomando pílula de farinha em vez de remédio "real".

Para quem está apenas interessado em curtir um pouco, sem preocupações éticas ou curiosidades neurofisiológicas, e-drugs são uma alternativa mais saudável que drogas de verdade. É claro que só funcionarão com os mais crédulos.

Raymond Kurzweil

http://pt.wikipedia.org/wiki/Raymond_Kurzweil


sábado, 11 de setembro de 2010

Daniel Dennett




















Homem precisa se enganar, diz biólogo

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1109201025.htm

RICARDO MIOTO


Platão, Kant e... Trivers?
Se essa lista parece estranha, Steven Pinker, talvez o mais importante psicólogo contemporâneo, discorda.
O biólogo Robert Trivers, diz, é um dos grandes pensadores da história do Ocidente -provavelmente o único deles que é defensor da maconha, apaixonado pela Jamaica e entusiasta do grupo de radicais negros Panteras Negras (ainda que branco).
Adriano Vizoni/Folhapress
O biologo americano Robert Trivers, durante palestra no auditorio do Instituto de Biociencias da USP
O biologo americano Robert Trivers, durante palestra no auditorio do Instituto de Biociencias da USP

A empolgação com o cientista se deve ao fato de que Trivers, quase sozinho, revolucionou a psicologia, ao propor, nos anos 1970, elos entre o comportamento humano e a teoria da evolução.

Trivers correlacionou, por exemplo, as diferenças entre o comportamento sexual masculino e o feminino ao fato de que homens investem menos em cada filho do que as mulheres (veja abaixo).

Seu tema de interesse atual é o autoengano. Ele defende que os humanos evoluíram para acreditar em mentiras que os façam se sentir melhor e que justifiquem suas atitudes.

O sujeito que, contra todas as evidências, acha que vai se recuperar de uma doença fatal, ou a mulher que se recusa a enxergar que o marido claramente a trai estão, então, apenas sendo humanos.

Apesar da aclamação atual, Trivers, 67, demorou para engrenar como cientista. Quando ainda era aluno da Universidade Harvard, ele trilhou um caminho impressionantemente torto.

WITTGENSTEIN DEMAIS

Tudo dava errado: tentou ser matemático, mas desistiu. Resolveu ser historiador, graduou-se em Harvard, mas ficou desanimado com os livros de história americana. Muita 'autoglorificação'.

Quis então ser advogado, mas não pôde entrar na escola de direito porque teve um colapso mental (ficava lendo Wittgenstein noite adentro e não dormia quase nada) e acabou tendo de ser internado para tomar antipsicóticos.


Editoria de Arte/Folhapress

Quando estava se recuperando, conseguiu um emprego para escrever e ilustrar livros de ciências que seriam usados em escolas por alunos de ensino médio.

Os livros venderam bem menos que o esperado- desagradaram aos mais conservadores, porque incluíam animais fazendo sexo e ignoravam o criacionismo.

O trabalho, porém, serviu para despertar o gosto de Trivers pela biologia, e ele conseguiu ser doutorando de Ernst Mayr (1904-2005), um dos principais teóricos evolutivos do século 20.

RENAS SIM, QUÍMICA NÃO

Mayr pediu que Trivers fizesse matérias na graduação. Ele preferiu usar o tempo para viajar e ver renas no Ártico.

Quando um comitê em Harvard percebeu a safadeza, quis que Trivers estudasse química orgânica. Ele disse que não havia motivo para preocupações: já estava até matriculado na disciplina.

Poucas horas depois de sair da reunião, vendeu o seu livro de química orgânica e queimou as peças de plástico que os alunos usavam para simular moléculas.

Apesar da rebeldia, os trabalhos publicados pelo garoto logo chamaram a atenção. Seu ponto central: atitudes humanas poderiam ser explicadas pelo sucesso reprodutivo que trazem.

Desavenças em Harvard (leia à direita) fizeram que, em 1978, Trivers saísse daquela universidade. Só voltaria quase 30 anos depois.

Nesse intervalo, exceto por alguns anos em Nova Jersey, Trivers alternou seus dias entre a Costa Oeste americana (era professor na Universidade da Califórnia em Santa Cruz) e sua grande paixão, a Jamaica.
Estudou os lagartos do país, mas isso era só um pretexto, conta. Ficou encantado mesmo com as mulheres jamaicanas -acabou se casando com duas delas (não ao mesmo tempo). Encontrou no país um paraíso: diz-se apaixonado pela cultura rastafári e por mulheres negras ou mestiças.

BLACK POWER
Nos anos 1980, na Califórnia, ele conheceu Huey Newton, líder dos Panteras Negras, grupo revolucionário americano que pregava que negros deveriam se armar para se defender.

Tornaram-se grandes amigos. Antes de ser assassinado, em 1989, Newton foi padrinho de uma das filhas de Trivers. Chegaram a escrever um trabalho científico sobre autoengano juntos -tema que interessava muito a Newton, diz Trivers. Esse se tornou, a partir dos anos 1990, o tópico favorito do biólogo.

Em paralelo, Trivers conduziu um estudo com crianças jamaicanas. Mapeou seus rostos em busca de imperceptíveis assimetrias e, depois, avaliou o quanto elas eram consideradas bonitas por outras crianças.

Viu que, em muitos casos, não é possível, a olho nu, dizer quem é mais simétrico, mas que o cérebro dos 'jurados' consegue fazer esse cálculo inconscientemente e apontar o mais simétrico como o mais bonito.

Enquanto não está pesquisando, uma das coisas que gosta de fazer na Jamaica é fumar maconha com conhecidos. É entusiasta do uso da erva e acha que não há motivo para não legalizá-la.

'Fumo há décadas', diz, enquanto dá uma pancadinha 'carinhosa' no interlocutor. Não consegue medir bem a força desses tapas, o que faz que, com o tempo, as pessoas ao seu redor fiquem condicionadas a fugir dos seus movimentos de mão.

Esteve pela primeira vez no Brasil no final de julho. Falou no encontro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e deu uma palestra na USP. Ao ser questionado se estava gostando do país, soltou: 'Claro! Muitas mulheres bonitas!'

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A ciência por trás do filme A Origem

Neurocientista explica quais são os erros e acertos científicos da produção estrelada por Leonardo DiCaprio

Sidarta Ribeiro*
Cena do filme A Origem (Reprodução)

"A Origem
 é uma condensação vertiginosa de cem anos de psicanálise, neurobiologia, filosofia e cinema"
A Origem é um filme desafiador. Num mundo não muito distante do nosso, em que existe tecnologia para invadir sonhos é realidade, um espião  altamente capacitado tem sua chance final de redenção condicionada à realização de uma missão impossível: implantar uma idéia estranha na mente de uma pessoa, capaz de levá-la a fazer algo que não quer. Na superfície, trata-se de um barulhento filme de ação típico de Hollywood, com tiros, perseguições de carros e muitas explosões. Na profundeza, é uma condensação vertiginosa de cem anos de psicanálise, neurobiologia, filosofia e cinema. Cientificamente, acerta um tanto e erra outro tanto.

O filme é composto de cinco narrativas, uma dentro da outra, articuladas em diferentes velocidades temporais com uma clareza desconcertante. Além do protagonista, cinco personagens adentram o sonho da vítima do golpe, para ajudar na difícil tarefa de semear o germe de uma ideia indesejada. Atuando de forma coordenada, tentam convencer a vítima a descer mais e mais profundamente, passando de um sonho a outro, até um local em que a ideia estrangeira possa ser plantada com sucesso.

Indução — Voltando para o mundo real (real em termos, já que a ciência não tem como provar que não estamos sonhando), com a tecnologia atual é possível induzir uma pessoa ao sono. Fazer a mesma pessoa sonhar é mais difícil. Substâncias precursoras de dopamina e acetilcolina afetam o sonho. O DMT (Dimetiltriptamina, uma substância psicodélica), contido na Ayahuasca, gera padrões de ativação cerebral e de experiência psicológica semelhantes aos observados durante o sonho. Mas os estudos ainda são incipientes.

Cientificamente é possível sonhar que se está sonhando, como muitos de vocês já devem ter experimentado e como acontece no filme. Mas ninguém sabe ao certo quantas camadas um sonho pode ter. Talvez milhares, talvez apenas duas ou três. Também não há dados sólidos a respeito.

Invasão —
Em A Origem, tudo acontece como se a tecnologia para fazer o implante fosse algo já estabelecido. Fora das telas, nada disso existe. Para realizar a invasão de sonhos seria necessário decodificar o sonho a ser invadido e ser capaz de inserir conteúdo novo nele, não próprio do sonhador original. A primeira parte talvez seja possível em um futuro não muito distante, a segunda parece mais difícil.

No que diz respeito à decodificação, nos últimos anos foram publicados artigos mostrando que é possível descobrir o que a pessoa está imaginando através da análise da ativação do córtex visual. Existe um truque aí, porque antes de fazer o experimento de "leitura de mentes", a pessoa é submetida a uma bateria de imagens visuais, e sua ativação no córtex visual é gravada, gerando um mapa de possíveis estados que depois serve de base para a codificação de imagens novas, ainda não apresentadas ao sujeito. Com ou sem truque, é uma façanha e tanto. No que diz respeito à invasão, nossa tecnologia para estimular o cérebro com eletricidade ou campo magnético ainda é muito grosseira para se pensar em causar imagens específicas numa pessoa.

Enquanto no filme o equipamento necessário para entrar nos sonhos cabe em uma maleta, os aparelhos atualmente existentes que permitem ver um cérebro sonhando são uma combinação de magnetoencefalografia (bem mais poderosa do que a eletroencefalografia comum) e ressonância magnética funcional. São técnicas que requerem o uso de aparelhos enormes, do tamanho de um carro cada, caríssimos. Mesmo eles não resolveriam o problema, esbarraríamos nas limitações citadas acima, mas pelo menos seria o melhor possível.
Divulgação
O ator Leonardo di Caprio, em cena do filme 'A Origem'
O ator Leonardo di Caprio, em cena do filme A Origem

Ritmo acelerado
— Uma vez dentro do sonho, o filme mostra que a cada camada o tempo passa mais devagar: um segundo no mundo dos acordados significa cinco minutos na primeira camada de sonho, duas horas na segunda, e assim por diante. Ponto para o filme. Existem algumas evidências em ratos de que a compressão temporal do processamento neuronal varia conforme as diferentes fases do sono. O resto é a imaginação de Christopher Nolan, o diretor do filme. Mas ele chega perto quando define a morte, dentro do sonho, como uma das formas para despertar. É muito difícil que as pessoas sonhem com a própria morte, embora algumas afirmem ter sonhos assim. No caso de A Origem, como acontece com a maioria das pessoas, morrer faz com que a pessoa acorde.

O filme também acerta em mostrar pessoas que sabem que estão dentro de um sonho, como os agentes contratados para implantar as ideias. Quando começamos a perceber que estamos sonhando, há quem consiga permanecer nesse estado sem despertar ou regressar para o sonho comum, equilibrando-se entre o espanto e a inconsciência. Se torna um sonhador lúcido, capaz de criar o enredo onírico com sua própria vontade, simulando o que quiser.

Chuva onírica —
A perturbação do sonho através da interferência sensorial - como a cena em que chove porque o dono do sonho está com vontade de ir ao banheiro - tem base científica. Como notou Freud, estímulos externos entram no sonho e são ressignificados, de forma que "o sonho protege o sono". Isso ocorre até um certo ponto, além do qual a pessoa acorda.

O mais interessante em “A Origem” é como o personagem principal enfrenta a impossibilidade de ter certeza sobre os limites da realidade. O desejo é motor do sonho, e o sonho não cessa. Repressão de memórias e loucura se entrelaçam, seguindo o fio condutor das idéias de Freud. Mas o espectador é levado ainda mais longe, saltando por cima das divergências acadêmicas no campo das psicologias e das neurociências para interrogar de modo incisivo, equipado com tudo que sabemos, qual é a arquitetura última da mente. Nada mal para um blockbuster.

*Sidarta Ribeiro é doutor em neurociências pela Universidade Rockefeller (2000), chefe de laboratório do Instituto Internacional de Neurociência de Natal (IINN-ELS), professor de Neurociências da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), pesquisador do Instituto de Ensino e Pesquisas do Hospital Sírio Libanês e pesquisador-colaborador da Universidade Duke (EUA).